Escritura de doação pode ser registrada sem necessidade de se registrar o usufruto

O Conselho Superior da Magistratura do Estado de São Paulo acordou ser possível o registro da doação, no Ofício de Registro de Imóveis, dispensando-se o registro do usufruto, em razão da anterior morte dos usufrutuários.

Segundo o acórdão, cujo julgamento teve a participação dos Exmos. Des. Ricardo Dip, Pereira Calças, Paulo Dimas Mascaretti, Ademir Benedito, Xavier de Aquino, Luiz Antonio de Godoy e Salles Abreu, o registro stricto sensu do usufruto também mencionado no título notarial é de todo desnecessário, quando, tal o caso, já a esta altura falecidos os usufrutuários, pois seria uma inscrição contra econômica, em todos os aspectos, incluído o do maltrato da economia de espaço na matrícula, afligindo a graficidade de sua visualização.

O princípio da legalidade impõe que apenas se efetuem inscrições eficazes in actu, de modo que o registro não se converta em local de acesso para não importa quais títulos ou mesmo (não) se confunda com um mero arquivo de informações.

Não é só desnecessário, é ilegal o registro desse versado usufruto; pois o registro constitutivo correspondente a este usufruto não produzirá ressonância jurídica alguma.

______________________________________________________________________

CSM-SP – Apelação nº 1058111-29.2015.8.26.0100 – registro: 2016.0000450219

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação nº 1058111-29.2015.8.26.0100, da Comarca de São Paulo, em que são apelantes CLÁUDIA DO AMARAL DE MEIRELLES REIS, CLÉLIA CARNEIRO DO AMARAL, GLÓRIA CARNEIRO DO AMARAL e FLÁVIA DO AMARAL MENDES GONÇALVES, é apelado XXXx OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS DA COMARCA DA CAPITAL.

ACORDAM, em Conselho Superior de Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Deram provimento ao recurso, nos termos do voto do Desembargador Ricardo Dip, v.u.”.

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores RICARDO DIP, vencedor, PEREIRA CALÇAS, vencido, PAULO DIMAS MASCARETTI (Presidente), ADEMIR BENEDITO, XAVIER DE AQUINO, LUIZ ANTONIO DE GODOY E SALLES ABREU.

Dúvida inversa – Recurso – Doação – Prova do pagamento de tributo – Usufruto – Morte dos usufrutuários – Cindibilidade do título.

  1. A dúvida inversa ou avessa é praxis que malfere o devido processo legal previsto no Código político brasileiro de 1988. Voto vencido do Relator designado que julgava extinto o processo, sem resolução de mérito.
  2. A prova do recolhimento do tributo incidente no negócio jurídico objeto do título levado a registro é indispensável, mas na impossibilidade de exibir-se a guia de sua recolha do tributo ou certidão acerca do pagamento ainda que impossibilidade somente relativa (ou seja, mera difficultas præstandi) –, é suficiente a asserção tabelioa sobre a exibição da guia no plano probatório ad tabulam (vale dizer, sem excluir via própria contenciosa de eventual interesse do Fisco).
  3. Neste quadro, todavia, o fato desse pagamento não está acomodado à fé pública notarial porque, enquanto fato, o pagamento não foi captado sensivelmente, visu et auditu, pelo tabelião. Se não se pode, com efeito, admitir a convocação fidei publicæ sobre este capítulo da escritura, não por isto, contudo, o título deixa de estimar-se suficiente nesta parte, cabendo considerá-lo à conta da veracidade da assertiva do tabelião (presunção hominis), veracidade que, tanto quanto a fé públicaconsiste num princípio de direito notarial. A distinção, entretanto, resguarda eventual direito de impugnação administrativa pela Fazenda credora, o que se recusaria se o ponto atraísse a fides publica.
  4. O registro stricto sensu do usufruto também mencionado no título notarial é de todo desnecessário, quando, tal o caso, já a esta altura falecidos os usufrutuários. Seria uma inscrição contraeconômica, em todos os aspectos (economia de esforços, de tempo e de custos), incluído o do maltrato da economia de espaço na matrícula, afligindo a graficidade de sua visualização.
  5. Mais agudamente, o princípio da legalidade impõe que apenas se efetuem inscrições eficazes in actu, de modo que o registro não se converta em local de acesso para não importa quais títulos ou mesmo se confunda com um mero arquivo de informações: inutilitates in tabula illicita sunt. De modo que não é só desnecessário, é ilegal o registro desse versado usufruto.
  6. O título notarial divide-se em capítulos, com correspondente eficácia analítica, admitindo-se sua cindibilidade se não houver, com isto, ruptura da conexão dos capítulos que venha a interferir com a integral validade dos fatos, atos ou negócios jurídicos objeto da escritura.

Vencido, em questão preliminar, o Relator designado, deram provimento ao recurso, em votação unânime, para registrar a doação, dispensados, contudo, o registro do usufruto (constante do título) e a averbação de cancelamento deste mesmo usufruto.

VISTO (Voto nº 39.812):

  1. Na esfera preliminar, meu voto extingue o processo sem resolução de mérito, desta dúvida inversa ou avessa, tal se habitua designar a espécie contra legem em que a recusa do registro é objeto de impugnação direta do interessado ao juízo corregedor.

Cuida-se de prática, com efeito, que não está prevista em lei, razão bastante para não se admitir de fato, por ofensa à exigência constitucional do devido processo (inc. LIV do art. 5º da Constituição federal de 1988).

Não autoriza a lei uma livre eleição de forma inaugural e de rito de nenhum processo administrativo, e, na espécie, a “dúvida inversa” não se afeiçoa ao previsto expressamente na Lei n. 6.015/1973 (de 31-12, arts. 198 et sqq.).

Se o que basta não bastara, cabe considerar que ao longo de anos, essa “dúvida inversa” se tem configurado por um risco para a segurança dos serviços e até para as expectativas dos interessados. É que, não rara vez (e o caso destes autos é só mais um exemplo dentre tantos), o pleito não atende a tão exigíveis preceitos de processo registral (assim, o primeiro deles, a existência de prenotação válida e eficaz) que está mesmo de logo fadado a frustrar-se, levando a delongas que o humilde respeito ao iter imposto em lei teria evitado.

Meu voto preliminar, pois, julga extinta a dúvida, sem apreciação de seu mérito, prejudicado o exame do recurso de apelação.

  1. Superada a preliminar, voto pelo provimento do recurso, admitindo-se o registro da doação sub examine, cuja inscrição se vedou à conta de falta de prova documentária específica idônea da recolha do tributo pertinente.

Há confirmação bastante do adimplemento do versado imposto de transmissão, adimplemento que, na espécie, não se pôde provar por outro meio documental, constando apenas da escritura pública objeto a menção à correspondente guia de recolhimento.

Embora a prova do discutido pagamento fosse mesmo de exigir, certo ademais que a impossibilidade de exibir-se a guia de recolhimento do tributo ou certidão acerca do pagamento é, no caso, somente relativa (ou seja, mera difficultas præstandi), calha que a asserção tabelioa sobre a exibição da guia é suficiente no plano probatório ad tabulam (vale dizer, sem excluir via própria contenciosa de eventual interesse do Fisco).

É certo que o fato desse pagamento não está chancelado pela fé pública notarial porque, enquanto fato, o pagamento não foi captado sensivelmente, visu et auditu, pelo tabelião.

Enfim, não se pode admitir a convocação fidei publicæ sobre este capítulo da escritura. Mas não por isto o título deixa de estimar-se suficiente nesta parte, cabendo considerá-lo à conta da veracidade da assertiva do tabelião (presunção hominis), veracidade que, tanto quanto a fé públicaconsiste num princípio de direito notarial. A distinção, entretanto, resguarda eventual direito de impugnação administrativa pela Fazenda credora, o que se recusaria se o ponto atraísse a fides publica.

  1. Acrescente-se a isso o fato de que, no direito brasileiro, a ninguém pode ser imposto o dever de conservar, por mais de cinco anos, um documento de prova.

A Instrução normativa nº 8, de 22 de janeiro de 1993, exarada pela Secretaria da Receita Federal, enuncia em seu art. 4º: “Todos os documentos contábeis e fiscais relacionados com o imposto de renda na fonte deverão ser conservados pelos declarantes pelo prazo de cinco anos” (os destaques não são do original).

Não diversamente, a Resolução nº 20, de 29 de fevereiro de 2012, expedida pelo Presidente do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) para estabelecer normas gerais de prevenção à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo, dispõe, confirmando o prazo mínimo assinado no § 2º do art. 10 da Lei nº 9.613, de 31 de março de 1998, que se devam conservar determinados “cadastros e registros”, bem como “correspondências impressas e eletrônicas”, pelo tempo de cinco anos (art. 12 da Resolução; esse dispositivo, no mais, confirma o critério adotado em anteriores Resoluções do Coaf).

Abdica-se, por agora, de extrair relevância mais ampla dessa fixação de um lustro para a exigência de preservação documental na esfera do imposto de renda na fonte e na do controle das atividades financeiras, mas, como se verá, esse prazo quinquenal está em concerto com o tempo da prescrição adotada, entre nós, para as ações de ressarcimento de danos ao Estado.

Com efeito, a Medida Provisória nº 2.180-35, de 24 de agosto de 2001, incluiu, entre outros, o artigo 1º-C na Lei nº 9.494, de 10 de setembro de 1997, assim enunciando:

“Prescreverá em cinco anos o direito de obter indenização dos danos causados por agentes de pessoas jurídicas de direito público e de pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos” (o realce gráfico não é do original).

A norma desse art. 1º-C acrescido à Lei nº 9.494, de 1997, por seu caráter especial, sobreviveu à edição do Código Civil de 2002, ante a força do que dispõe o § 2º do art. 2º do Decreto-lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942 (atual Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, cf. Lei nº 12.376, de 30-12-2010, art. 2º).

  1. Por fim, quanto ao registro stricto sensu do título de usufruto também mencionado no instrumento notarial, já a esta altura falecidos os usufrutuários, a inscrição é de todo desnecessária.

Com efeito, o registro constitutivo correspondente a este usufruto não produzirá ressonância jurídica alguma.

É contraeconômico, para logo, em todos os aspectos (economia de esforços, de tempo e de custos), efetivar-se uma inscrição registrária destituída de toda eficácia atual.

Além disso, tratar-se-ia de uma inscrição em maltrato da economia de espaço na matrícula, afligindo o interesse gráfico de sua visualização.

Mais agudamente, o princípio da legalidade impõe que apenas se efetuem inscrições eficazes in actu, de modo que o registro não se converta em local de acesso para não importa quais títulos ou mesmo se confunda com um mero arquivo de informações. Daí o aforismo inutilitates in tabula illicita sunt. Ou seja, mais que desnecessário, o registro do título de usufruto, na espécie, seria ilegal.

Não custa acrescentar que o título notarial pode, tal o caso, dividir-se em capítulos, com correspondente eficácia analítica, admitindo-se, pois, sua cindibilidade, contanto que a ruptura da conexão dos capítulos não interfira com a integral validade dos fatos, atos ou negócios jurídicos objeto da escritura.

DO EXPOSTO, por meu voto preliminar, vencido, julgava extinto o processo, sem resolução de mérito, prejudicado o exame do recurso de apelação de Cláudia do Amaral de Meirelles Reis e Outros.

No mérito, provejo o recurso, para o fim de que se registre a aquisição objeto, dispensados, contudo, o registro do usufruto (constante do título) e a averbação de seu cancelamento.

É como voto.

São Paulo, 21 de junho de 2016.

Des. RICARDO DIP

Presidente da Seção de Direito Público

Relator designado


Este texto não substitui o publicado no DJe em 21/07/2016)

 

Deixe uma resposta