Escritura de Inventário com Testamento – recusa do registro de imóveis

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CSM-SP – REGISTRO DE IMÓVEIS – DÚVIDA JULGADA PROCEDENTE – ESCRITURA DE INVENTÁRIO COM TESTAMENTO E PARTILHA – ESCRITURA LAVRADA COM BASE NO ITEM 130 DO CAPÍTULO XVI DAS NSCGJ – INOBSERVÂNCIA DA VONTADE DA TESTADORA – HERDEIROS TESTAMENTÁRIOS QUE RECEBEM PARCELA DO PATRIMÔNIO BEM INFERIOR AO QUE PRETENDIA A TESTADORA – OFICIAL QUE, JUNTAMENTE COM O TABELIÃO QUE LAVROU A ESCRITURA, DEVE ZELAR PELO CORRETO CUMPRIMENTO DA DECLARAÇÃO DE ÚLTIMA VONTADE – DESQUALIFICAÇÃO QUE SE JUSTIFICA – RECURSO NÃO PROVIDO.

Não cabe ao tabelião, contudo, aventurar-se em interpretação criativa, que não reflita com exatidão e clareza a vontade do testador.

Trata-se de apelação interposta por R. V. S. contra a r. sentença de fls. 87/92, proferida pelo MM. Juiz Corregedor Permanente do *º Registro de Imóveis e Anexos de ***, que, mantendo a exigência apresentada pelo Oficial, negou o registro de escritura de inventário com testamento e partilha.

Sustenta o apelante, em resumo, que a via administrativa não é palco adequado para a análise da vontade da testadora; que o título apresentado a registro obteve qualificação positiva em dois Cartórios de Registro de Imóveis da Capital; que a escritura de inventário e partilha observa fielmente a vontade da falecida, estando todos os interessados de acordo com a partilha realizada; que a indivisibilidade da herança somente se dá até a partilha; e que a legítima dos herdeiros foi respeitada. Ao final, requer que o título apresentado seja registrado (fls. 98/108).

A Procuradoria de Justiça opinou pelo não provimento do recurso (fls. 137/139).

É o relatório.

O presente caso envolve a interpretação tanto do testamento feito pela falecida L. P. S., como da escritura de inventário e partilha lavrada na forma do item 130 do Capítulo XVI das NSCGJ, e que deve estrita obediência ao teor do primeiro documento.

De acordo com a cláusula nº 4 do referido testamento, os filhos de L., C. E. P. S. e D. P. S., deveriam cada um receber um imóvel distinto. A C. caberia um apartamento em ***, Localizado na Rua ***, e a D., um apartamento em **, localizado na Avenida *** (fls. 72).

Em seguida, prescreve a cláusula nº 5 da mesma declaração de última vontade: “que, institui herdeiros da parte disponível dos bens que existirem por ocasião de seu falecimento, respeitada a destinação dos apartamento legados aos seus dois referidos filhos, disponível esta que corresponde a metade de seu patrimônio, a seus netos e sobrinha:” (fls. 72).

A leitura atenta das cláusulas nos leva a duas conclusões acerca da manifestação de vontade da autora do testamento.

A primeira delas é que a falecida quis que os imóveis legados aos filhos – que são seus únicos herdeiros necessários – fossem considerados como parte da legítima a que têm direito. Dizendo de outro modo: não pretendeu a falecida legar estes imóveis aos filhos, resguardando-lhes, ainda, metade do restante da herança. A pretensão, aliás, como destacado pelo MM. Juiz Corregedor Permanente (fls. 91), é válida, na forma do Art. 2.014 do CC.

A segunda conclusão é que a testadora desejava deixar toda a parte disponível da herança para os herdeiros testamentários que escolheu.

Todavia, a análise da escritura de inventário e partilha de fls. 14/26 revela que a vontade da testadora não foi integralmente observada em nenhum desses pontos.

Isso porque os herdeiros necessários, além dos apartamentos que, em valores, já representavam quase metade da herança, foram aquinhoados com parcela da herança bem superior a que lhes cabia.

Por consequência, entre os herdeiros testamentários foi dividida parcela da
herança bem inferior à que foi prevista pela testadora.

A herança tinha um valor total de R$1.980.477,66 (fls. 21). Os apartamentos legados aos filhos (R$501.967,00 + R$461.540,33 = R$963.507,33 – fls. 21) por pouco não atingem a metade correspondente à legítima (R$990.238,83). Para que a legítima fosse preservada, os herdeiros filhos deveriam receber o pagamento da diferença entre o valor da metade do monte (R$990.238,83) e dos apartamentos legados (R$963.507,33), o que totaliza R$26.731,50. Caso isso fosse observado, os herdeiros necessários dividiriam a legítima e os testamentários, a parte disponível. Essa complementação de quinhões, que aparentemente não decorre da cláusula testamentária acima transcrita, encontra fundamento no Art. 1.967 do CC, que preceitua que “as disposições que excederem a parte disponível reduzir-se-ão aos limites dela, de conformidade com o disposto nos parágrafos seguintes”. Ou seja, nos moldes do artigo mencionado, não havia como deixar apenas os apartamentos aos filhos; uma complementação dessa parte era necessária para a preservação da legítima.

Ocorre que essa complementação, para respeitar a vontade da falecida, deveria ser limitada ao mínimo, isto é, R$26.731,50. O título apresentado a registro, porém, foi muito além disso, na medida em que atribuiu a cada um dos filhos bens correspondentes a R$254.242,58 (fls. 21/22), totalizando R$508.485,16.

Em porcentagem, a autora da herança pretendia que a divisão de seu patrimônio se desse da seguinte forma: 25% para cada um dos filhos e 10% para cada um dos herdeiros testamentários. Em vez disso, a partilha decorrente da escritura de fls. 14/26 resultou no seguinte: 38,18% para o herdeiro C. E. P. S. R$501.967,00 + R$254.242,58 = R$756.209,58); 36,14% para o herdeiro D. P. S. (R$461.540,33 + R$254.242,58 = R$715.782,91); e 5,13% para cada um dos herdeiros testamentários (R$101.697,03).

Desse modo, embora a autora da herança tenha feito testamento visando deixar a seus netos e sobrinha metade de seu patrimônio, a escritura apresentada a registro reservou-lhes pouco mais de 25% do patrimônio inventariado.

Nota-se que a desqualificação do título, como bem concluíram o Oficial e o MM. Juiz Corregedor Permanente, está correta, pois a escritura de inventário e partilha apresentada a registro não espelha a vontade instrumentalizada na escritura de testamento (fls. 71/74).

Nem se argumente que o vício apontado não poderia ser indicado em exame de qualificação.

Com efeito, se até o título judicial está sujeito à qualificação, o título extrajudicial que, no caso, substitui o formal de partilha, também está. E a desqualificação aqui apontada é resultado de exame de legalidade do título, uma vez que a busca pela preservação da real vontade do testador decorre de texto expresso de Lei (Art. 1.899 do CC).

Vou mais longe. Os inventários que contêm disposições testamentárias, a princípio e por força de lei, devem processar-se em juízo, exatamente para que a vontade do testador seja fielmente observada.

Admitiu-se por entendimento na esfera administrativa que, após o registro do testamento, a partilha fosse levada a efeito na esfera extrajudicial. Não cabe ao tabelião, contudo, aventurar-se em interpretação criativa, que não reflita com exatidão e clareza a vontade do testador. O desejo de herdeiros que implique em interpretação duvidosa da vontade do testador está fora e além da autonomia do tabelião, ou, em outras palavras, circunscrita à esfera jurisdicional.

Não merece registro escritura de partilha extrajudicial na qual a interpretação conferida pelos herdeiros, legatários e tabelião destoa de modo claro da vontade do testador.

Ante o exposto, pelo meu voto, nego provimento à apelação.
FRANCISCO LOUREIRO, Corregedor Geral da Justiça e Relator


CSM-SP – Apelação Cível nº 1016124-17.2023.8.26.0590

Leia também: STJ busca conciliar segurança do testamento e respeito à manifestação da última vontade : “Da mesma maneira, a ministra Nancy Andrighi, ao analisar o REsp 1.633.254, observou que, em se tratando de sucessão testamentária, o objetivo a ser alcançado é a preservação da manifestação de última vontade do falecido. Segundo ela, as formalidades previstas em lei devem ser examinadas à luz dessa diretriz”.

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