VLADIMIR HERZOG e a Comissão Nacional da Verdade

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DICOGE 1.2
PROCESSO Nº 2012/137854 – SÃO PAULO – MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO – Parte: COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE.
DECISÃO:
Vistos etc.

O Ministro GILSON LANGARO DIPP, Coordenador da Comissão Nacional da Verdade, encaminhou ao Juízo da 2ª Vara de Registros Públicos da Capital expediente com a finalidade de se retificar a causa da morte de VLADIMIR HERZOG, para constar do assento de óbito “morte por decorrência de lesões e maus tratos sofridos durante interrogatório em dependência do II Exército (DOl/CODI)”.

O pedido veio instruído com o termo de deliberação dos membros da Comissão Nacional da Verdade(1), parecer do assessor Manoel L.V. de Castilho(2), requerimento da viúva Clarice Herzog(3), que juntou a célebre sentença do Juiz Márcio José de Moraes(4) e V.Acórdão do TRF(5) que manteve a decisão de primeiro grau.

Juntou-se cópia do assento de óbito nº 88.264, lavrado aos 27.10.1975, em que figura “asfixia mecânica por enforcamento”, como causa da morte de VLADIMIR HERZOG(6). Após parecer ministerial no sentido de parcial acolhida(7), sobrevém a decisão do Juiz Márcio Martins Bonilha Filho que deferiu o pleito, para ordenar a retificação no assento de óbito, exatamente nos termos propostos pela Comissão Nacional da Verdade(8).

Contra a decisão interpôs o Ministério Público recurso com vistas à exclusão da expressão “lesões e maus tratos”, por desatender ao disposto no artigo 80, § 8º, da Lei de Registros Públicos(9). O parecer da Ilustrada Procuradoria Geral da Justiça, da lavra do Promotor Francismar Lamenza, é no sentido do desprovimento do recurso(10). Juntou-se aos autos manifestação da requerente, a Comissão Nacional da Verdade(11).

É uma síntese do necessário.

O compromisso dos Registros Públicos é com a verdade real. O anacronismo da cultura jurídica ainda não se compenetrou de todo com a atual realidade brasileira, resultado da opção constituinte por verdadeira constitucionalização da ordem jurídica.

O positivismo esgotou seu ciclo histórico, na linguagem de Manuel Atienza. Assim como Bloch escreveu que “a escola histórica crucificou o Direito natural na cruz da história”, hoje não é heresia asseverar que “o constitucionalismo crucificou o positivismo jurídico na cruz da Constituição”(12). A ordem cidadã impõe-se e prepondera sobre o fetiche da lei. Significa isso que a interpretação das leis se fará conforme a Constituição. Ou seja: “de todas as interpretações possíveis de uma lei, o juiz deve descartar todas aquelas que vulnerem (ou que sejam incompatíveis) com a Constituição”(13).

Uma Constituição que erigiu como supraprincípio a dignidade humana, reclama interpretação a partir do eixo dos direitos fundamentais e dos princípios sobre que se baseia a República. Compreende-se a hesitação em fazer inserir num assento de óbito expressões que nele não teriam lugar, à luz da arcaica visão do papel dos Registros Públicos. É sintoma das duas tendências que Márcio Pugliese detectou nos cursos jurídicos do Brasil: “um ensino excessivamente dogmático, desvinculado de outras dimensões do conhecimento da humanidade e da sociedade conducente a um juspositivismo exacerbado e, ainda, um ensino teórico – zetético do Direito cada vez mais desvinculado da realidade social, face sua progressiva tecnicidade, afastandose das antigas e novas tramas argumentativas e mergulhando cada vez mais profundamente na teoria de jogos e pesquisa operacional”(14).

A inserção no assento de óbito de uma causa para a morte de VLADIMIR HERZOG – “asfixia mecânica por enforcamento” – atendeu às formalidades legais. Mas ela traduz o que de fato ocorreu nas dependências estatais onde ele foi morto? Por que sacrificar a verdade à forma? Não é essa a vontade fundante que consagra a transparência como um dos valores republicanos, estratégia pedagógica para que novos atos que envergonham a espécie humana sejam banidos do convívio democrático.

O neoconstitucionalismo em que estamos imersos – queiramos ou não – representa uma janela ou respiradouro aberto no muro formalista. Sob um Estado que se quer de índole democrática, a possibilidade de se aperfeiçoar a justiça das decisões judiciais deve ser a preocupação de todos. É preciso levar a Constituição a sério e ela não se compatibiliza com a satisfação do formalismo, em detrimento do justo, do real e do verdadeiro, O constitucionalismo de efetividade é o desafio da comunidade jurídica e a releitura de todo o ordenamento há de ser feita à luz da vontade constituinte. Não é demais recordar que a Lei de Registros Públicos foi editada quinze anos antes do advento da Constituição, em pleno curso do autoritarismo. Se formalmente recepcionada, requer uma aplicação afinada com os novos tempos, nos quais a universalização e a horizontalização dos direitos fundamentais constituem saudável realidade.

Nem se diga cuidar-se de interesse privado, o da retificação do assento. Habermas forneceu a concepção de uma equiprimordialidade entre a autonomia privada e a autonomia pública: “a defesa de um direito individual vai muito além da tutela dos interesses das partes envolvidas, pois, quando o direito de qualquer um de nós é violado, toda a sociedade é aviltada com isso”(15). Cumpre à comunidade jurídica fazer valer os princípios democráticos e republicanos, notadamente ao Judiciário compenetrar-se de sua responsabilidade institucional e compreender o que significa democracia militante ou democracia que se auto-defende, eis que o direito à verdade insere-se naqueles originariamente pré-constitucionais, garantidos pela Constituição e pelo Estado-juiz.

A verdade pode machucar, mas ela não pode ser oculta. O prestígio exagerado da forma fez do universo jurídico uma seara propícia a representar um cenário de ficção. Desde o asserto “o que não está nos autos não está no mundo” ao paroxismo de determinados institutos quais a prescrição, a decadência, a preclusão e análogos, até o declarado objetivo de se buscar segurança jurídica e não a utopia da justiça, tudo contribui para que no território do direito prevaleça a versão, com sacrifício do fato.

Além das bem lançadas ponderações a respeito da verdade, contidas nos autos desde o pleito até ao lúcido parecer da Procuradoria Geral da Justiça, é importante resgatar a ideia de que a verdade se contrapõe ao erro. E “o erro é a causa da miséria dos homens, é o princípio sinistro que produziu o mal no mundo, é o que faz nascer e sustenta, em nossa alma, todos os males que nos afligem, e não devemos esperar felicidade sólida e verdadeira senão trabalhando seriamente para evitá-lo”(16).

A retificação do assento restabelece a verdade real. O assento passa a corresponder à mais absoluta verdade. Só a verdade “é incriada, imutável, imensa, eterna, acima de todas as coisas. Ela é verdadeira por si mesma; ela não obtém sua perfeição de nenhuma coisa; torna as criaturas mais perfeitas e todos os espíritos buscam naturalmente conhecê-la”(17).

Correta a decisão do Juiz Márcio Martins Bonilha Filho, ao atuar conforme a consistente e racional tendência de se prestigiar o aumento fálico de uma sensibilidade por parte dos juízes para uma orientação geral voltada para o futuro. A atividade judicial é eminentemente corretiva e sinaliza à sociedade qual a melhor interpretação a ser conferida à ordem jurídica.

A decisão não é meramente formal, senão emblemática, assim como o fora a corajosa e destemida atuação jurisdicional de Márcio José de Moraes ao condenar a União pelo homicídio do jornalista VLADIMIR HERZOG. Pois “para o juiz, ‘a escolha entre uma norma válida e outra inválida obedece a considerações que se encontram para além das próprias normas’(18): a ética, se se admitir que o direito contém uma representação da obrigação fundada no respeito pelos outros e pelo seu projeto de vida em comum; a política, se se admitir que esta se encontra, em parte, vinculada a formas institucionais pré-estabelecidas, ordenadas em função de uma comunidade que pretende, ela própria, apagar os traços da violência originária do poder”(19).

É exatamente disto que se trata. O constituinte de 1988 abomina a violência e quis bani-la da realidade brasileira. Por isso é que o direito não pode desprezar princípios meta jurídicos, situados para além da norma, calcados na inevitável conclusão de que os seres humanos têm direitos morais contra o Estado.

Sobre o ordenamento, notadamente o calcado em formalismos, sobreleva e se impõe a superioridade dos direitos humanos, como expressão de sadia concepção de Humanidade, titular de direitos pré-políticos e pré-jurídicos. Respeitar a dignidade da pessoa é o critério último de validade de toda a ordem jurídica e nisso – adequada e sensatamente – se situou o douto magistrado sentenciante.

Por estes fundamentos, acolhidos os constantes dos textos encartados nos autos e o primoroso parecer do Promotor Francismar Lamenza, NEGO PROVIMENTO ao recurso, para que prevaleça a bem lançada sentença do Juiz Márcio Martins Bonilha Filho.

Intimem-se.
Publique-se a decisão na íntegra.
São Paulo, 12 de dezembro de 2012.

(a) JOSÉ RENATO NALINI
Corregedor Geral da Justiça

(1) GILSON LANGARO DIPP, CLÁUDIO FONTELES, JOSÉ CARLOS DIAS, JOSÉ PAULO CAVALCANTI FILHO, MARIA RITA KEHL, PAULO SÉRGIO PINHEIRO e ROSA MARIA CARDOSO DA CUNHA, doc. de fIs. 04 dos autos.
(2) FIs. 5/9 dos autos.
(3) FIs.10/17 dos autos.
(4) FIs. 18/84 dos autos.
(5) FIs. 85/101 dos autos.
(6) Doc. de fIs. 103 dos autos.
(7) Parecer de fIs. 105/108 dos autos.
(8) Sentença de fls. 109/112 dos autos.
(9) Razões de fls. 118/122 dos autos.
(10) Parecer de fls. 130/141 dos autos.
(11) Memorial de fIs. 144/151, firmado pelo Coordenador Cláudio Lemos Fonteles, José Carlos Dias, Paulo Sérgio Pinheiro e Rosa Maria Cardoso da Cunha.
(12) ATIENZA, Manuel, EI Derecho como argumentación, Ariel, Barcelona, 2006, p.44.
(13) REGLA, Josep Aguiló, Do “Império da Lei” ao “Estado Constitucional”. Dois Paradigmas Jurídicos em Poucas Palavras, in MOREIRA, Eduardo Ribeiro, Argumentação e Estado Constitucional, São Paulo, Ícone Editora, 2012, p.103.
(14) PUGLIESE, Márcio, O Sistema de Ensino e o Juspositivismo – Breve Excurso Histórico, in MOREIRA, Eduardo Moreira, op.cit., idem, p.352.
(15) SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo, Hermenêutica Jurídica e(m) debate – O Constitucionalismo Brasileiro entre a Teoria do Discurso e a Ontologia Existencial”, Belo Horizonte, Editora Forum, 2007, p.352.
(16) MALEBRANCHE, Nicolas, A Busca da Verdade, São Paulo, Paulus, 2004, p.59.
(17) MALEBRANCHE, Nicolas, op.cit., idem, p.198.
(18) DWORKIN, Ronald, Taking Rights, p.27
(19) DWORKIN, Law’s Empire, cit., pp.206 e ss. Citações ambas de QUEIROZ, Cristina, Interpretação Constitucional e Poder Judicial – Sobre a Epistemologia da Construção Constitucional, Coimbra Editora, 2000, Coimbra, p.85.
(D.J.E. de 17.12.2012 – SP)

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