Doação de dinheiro para aquisição e cláusula de reversão: possibilidade

“E a possibilidade de doação em dinheiro para ser empregada de maneira determinada é indiscutível… “Essa possibilidade não atenta contra o ordenamento jurídico.

Dúvida Registraria – 1ª Vara de Registros Públicos de São Paulo – L. A. F. – 2º CRI-SP – Doação de dinheiro para aquisição – cláusula de reversão – possibilidade – dúvida improcedente.

Vistos, etc.

A requerimento de L. A. F., o Zeloso e Culto Oficial do Segundo Cartório de Registro de Imóveis suscita a presente dúvida, aduzindo que recusou registro a título que instrumenta venda e compra do apartamento xx e do box de garagem nº xx, do Condomínio Mansão Bruxelas, sito à Rua Bruxelas, nº 152. Isto porque, a nua-propriedade do imóvel foi adquirida em nome de L. F. e L. C. F. com recursos fornecidos pela suscitada, a qual, além de figurar como adquirente ao direito real de usufruto, impôs cláusulas restritivas e de versão. Esta última, porém, não é passível e ingresso, eis que a doação foi do dinheiro e não há que se falar em reversão em favor de terceiros.

A suscitada ofertou impugnação às fls. 20/21, alegando que seu direito deve ser respeitado e que merece ser tratada como se doadora do imóvel fosse.

A Drª Curadora de Registros Públicos, por derradeiro, opinou pela improcedência da dúvida, aduzindo que nada impede que a reversão se faça em espécie diversa daquela da doação (fls. 23/25).

É o Resumo do Essencial.

Decido.

Consoante consta de escritura lavrada no Décimo Quarto Tabelionato da Capital em 22 de maio de 1991, A. A. E P. LTDA. vendeu a nua-propriedade dos imóveis matriculados no Segundo Cartório de Registro de Imóveis sob nºs xx e yy para L. F. e L. C. F. e o usufruto para L. A. F., acrescentando-se que está última doou àqueles o numerário para a aquisição dos bens, ‘na condição que os mesmos fiquem gravados com as CLÁUSULAS VITALÍCIAS de INCOMUNICABILIDADE, IMPENHORABILIDADE e de REVERSÃO, assim, no caso de falecimento de um dos nu-proprietários, a parte deste reverterá ao patrimônio dela usufrutuária’ (fls. 12/18).

A imposição de cláusula de incomunicabilidade e de impenhorabilidade e a reserva do usufruto não configuram doação modal ou com encargos, mas de doação pura e simples (cf. apelação cível nº 5.452-0, Santos, relator o Desembargador SYLVIO DO AMARAL). As cláusulas restritivas são estipulações que beneficiam tão somente os donatários, enquanto que a reserva de usufruto não se revela como prestação a ser adimplida pelos destinatários do ato de liberalidade.

E a possibilidade de doação em dinheiro para ser empregada de maneira determinada é indiscutível, o mesmo sucedendo com a imposição de cláusulas restritivas, como aliás, já decidiu o E. Conselho Superior da Magistratura, no julgamento do agravo de petição nº 237.990, de São Paulo, relator o Desembargador MARCIO MARTINS FERREIRA, destacando que a cláusula de incomunicabilidade (instituída naquele caso específico) insere-se no modus e que ‘não beneficia somente a donatária, mas também a prole, porquanto com a cláusula é evitada a delapidação do bem que refoge do patrimônio comum’ (cf. ‘Acórdãos do Conselho Superior da Magistratura do Biênio 1974/1975’, págs. 122-124).

Ora, embora se admita a existência de dois contratos (doação do dinheiro e compra e venda de imóvel), é inegável tratamento da matéria, por ficção, como se doação do imóvel fosse. Isto por diversas razões: a) a instituição de cláusulas restritivas é faculdade do proprietário e que tem plena disponibilidade do imóvel. A doadora, adquirente do usufruto, não é titular de direito real sobre os imóveis adquiridos; b) não é lícita a imposição de cláusulas nos contratos de compra e venda (cf. ‘Das Cláusulas de Inalienabilidade, Impenhorabilidade, Incomunicabilidade, Sub-rogação). Aspectos Práticos, Doutrina, Jurisprudência’, in ‘Revista de Direito Imobiliário’, vol. 19-20, pág. 41); c) as restrições são impostas, em geral, em testamento ou em doação.

A possibilidade de, um único ato, envolver venda e compra em decorrência de doação de numerário e a imposição do gravame das cláusulas e, ainda, a constituição de usufruto em favor da doadora, foi expressamente admitida pelo E. Conselho Superior da Magistratura (cf. agravo de petição nº 237.900) e por decisão do notável Juiz JOSÉ RENATO NALINI no processo nº 38/89, desta Vara, com respaldo, ainda, dos não menos notáveis Oficiais ADEMAR FIORANELI e JERSÉ RODRIGUES DA SILVA (cf. Boletim do IRIB nº 91, pág. 1). E essa conclusão é incensurável por adequada ao nosso sistema jurídico, evitando dois negócios jurídicos distintos e subsequentes (compra e venda num primeiro plano e doação subsequente, com imposição de cláusulas restritivas) e que não representariam a vontade imediata das partes, ou seja, aquisição de bem com numerário doado e com imposição de cláusulas e reserva de usufruto.

O mesmo raciocínio desenvolvido para admissão das cláusulas restritivas ao sistema registrário deve ser aplicado à cláusula de reversão. Nada impede que se estipule que os bens adquiridos com o dinheiro doado voltem ao patrimônio da doadora, se sobreviver aos donatários.

Não se cuida aqui de estipulação em favor de terceiro, vedada pela lei, mas de cláusula reversiva em prol da doadora, ainda que com o fruto da aplicação do dinheiro. E essa possibilidade não atenta contra o ordenamento jurídico, valendo a advertência atual de que o Registro Público não constitui fim em si mesmo, mas de meio de que se devem valer os interessados para autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos. O Registro de Imóveis deve acolher escritos que instrumentam direitos reais ou direitos providos de formas especiais de realidade, reconhecidos em lei (cf. WALTER CENEVIVA, in ‘Manual do Registro de Imóveis’, pág. 44).

Nem se argumente a impossibilidade de escrituração da cláusula nas matrículas respectivas pela ausência de titularidade de direito real da doadora. Via de regra, como bem esclarece o eminente ELVINO SILVA FILHO, ‘na doação com cláusula de reversão do imóvel ao doador, sobrevindo ao donatário, ocorrendo o falecimento deste antes do doador, o ato a ser praticado pelo Oficial do Registro de Imóveis é o da averbação do óbito, e o cancelamento do registro da doação e eventualmente de outros registros que tenham por causa atos jurídicos do donatário’ (cf. ‘Efeitos da Doação no Registro de Imóveis’, in ‘Revista de Direito Imobiliário’, vol. 19/20, pág. 35). No caso específico, porém, a exemplo do que ocorre no fideicomisso, dever-se-á escriturar no registro de aquisição da nua-propriedade que o bem foi adquirido com numerário fornecido pela suscitada e que ela estipulou cláusula de reversão a seu favor em caso de sobreviver aos donatários. Em ocorrendo essa hipótese apenas averbar-se-á o óbito e a consolidação, pelo implemento de condição resolutiva, do domínio em favor da suscitada.

Assim, em face do exposto e de tudo o mais que dos autos consta, JULGO IMPROCEDENTE a presente dúvida e determino ao Senhor Oficial que proceda ao registro do título.

Cumpra-se o disposto no Artigo 203, nº II, da Lei de Registros Públicos, desentranhando-se o título e os documentos que o acompanham.

Custas e despesas na forma da lei.

São Paulo, 10 de setembro de 1991.

Dr. KIOITSI CHICUTA, MM. Juiz de Direito.


Leia nova sentença de 08/11/2022 da 1ª VRP-SP

Pegue o pdf aqui – cortesia do site Kollemata, por Sergio Jacomino, organizador

Nota do Editor: Merece registrar que o MM. Juiz de Direito, Dr. Gustavo Henrique Bretas Marzagão, em sua passagem pela 1ª Vara de Registros Públicos da Capital, como tantos outros, proferiu sentença em caso análogo, lecionando que:

“… Uma vez definido que o rol do Art. 547 do Código Civil, é exemplificativo, verifica-se, em obséquio ao princípio da especialidade, a natureza de cláusula de reversão da condição imposta na doação. Afinal, a infidelidade nela prevista, assim como a morte anterior do donatário, é evento futuro e incerto. Não se pode olvidar, outrossim, que: “Tradicionalmente, desde o direito romano, as pessoas são livres para contratar. Essa liberdade abrange o direito de contratar se quiserem, com quem quiserem e sobre o que quiserem, ou seja, o direito de contratar e de não contratar, de escolher a pessoa com quem fazê-lo e estabelecer o conteúdo do contrato. O princípio da autonomia da vontade se alicerça exatamente na ampla liberdade contratual, no poder dos contratantes de disciplinar os seus interesses mediante acordo de vontades, suscitando efeitos tutelados pela ordem jurídica. Têm as partes a faculdade de celebrar ou não contratos, sem qualquer interferência do Estado. Podem celebrar contratos nominados ou fazer cominações, dando origem aos contratos inonimados” (idem, pág. 20)…

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