Sucessão, partilha, companheiro não é herdeiro necessário
Dúvida Registrária – 1ª Vara de Registros Públicos de São Paulo
Assim, pela própria segurança jurídica, que pretendeu o STF garantir com a modulação dos efeitos, a presente sucessão deve ser garantida na forma em que lavrada a escritura de inventário e partilha, garantindo-se ainda a preservação da vontade do testador, princípio interpretativo previsto no Art. 1.899 do Código Civil.
Dúvida – Registro de Imóveis – H. M. M. e outros – Vistos. Trata-se de dúvida suscitada pelo Oficial do xxº Registro de Imóveis da Capital, a requerimento de H. M. M. e outros, após negativa de registro de escritura pública de inventário e partilha, decorrente do falecimento de L. M. M., tendo por objeto diversos imóveis matriculados na mencionada serventia. O óbice se deu por não ter a escritura considerado o companheiro da de cujus como herdeiro necessário, nos termos do decidido nos Recursos Extraordinários 646.721 e 878.694, julgados pelo Supremo Tribunal Federal. O Oficial aduz que, uma vez decidido que não pode haver distinção entre o regime sucessório atribuído ao casamento e à união estável, seria então o companheiro herdeiro necessário, de modo que o testamento deixado pela de cujus não poderia dispor de todo seu patrimônio em favor de terceiros. Ainda, argumenta que a escritura, por ter sido lavrada após o julgamento pelo Colendo Supremo Tribunal Federal, teria que se adequar ao ali decidido. Juntou documentos às fls. 09/247. Os suscitados impugnaram a dúvida às fls. 248/252, com documentos às fls. 253/270. Alegam que todos os bens inventariados já são de titularidade do companheiro na proporção de 50%, que os adquiriu juntamente com a de cujus enquanto conviviam em união estável, reconhecida contratualmente. Aduzem também que o testamento foi lavrado obedecendo o Código Civil vigente, anteriormente ao pronunciamento do Supremo Tribunal Federal. Por fim, informam que o mesmo título deu origem a registros em outros cartórios de imóveis da capital. Documentos às fls. 253/270. O Ministério Público opinou às fls. 274/281 pela improcedência da dúvida.
É o relatório. Decido.
Em que pese a cautela do Oficial, o óbice deve ser afastado. No julgamento dos REx nº 646.721 e 878.694 pelo Supremo Tribunal Federal, foi declarada a inconstitucionalidade do Art. 1.790 do Código Civil, que disciplinava a sucessão dos conviventes em união estável, estabelecendo-se a tese de que “No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no Art. 1.829 do CC/2002. ”Não se discutiu, naqueles autos, especificamente a questão da condição do companheiro como herdeiro necessário. Em outras palavras, disciplinou-se apenas que os conviventes têm os mesmos direitos dos cônjuges, na ordem legítima de sucessão, sem ficar expressamente decidido se uma parcela da herança deve ser reservada ao convivente. Em outras palavras, não se garantiu a reserva de patrimônio aos companheiros, mas apenas que, havendo bens a serem partilhados na ordem da legítima, estes devem ser equiparados aos cônjuges. Não se ignora que, nos termos da tese acima descrita, parece ter havido uma equiparação total entre cônjuges e companheiros, de modo que o Art. 1.845 do Código Civil, ao disciplinar que o cônjuge é herdeiro necessário, deveria ser estendido também aos companheiros. Tal tese é, inclusive, compatível com a ratio decidendi dos mencionados precedentes do Supremo Tribunal Federal, que pretende garantir ao companheiro uma quota dos bens do falecido, justamente pela convivência entre eles e para garantia de seu bem estar. Nos termos do voto do eminente Ministro Roberto Barroso: ”Se o Direito Sucessório brasileiro tem como fundamento a proteção da família, por meio da transferência de recursos para que os familiares mais próximos do falecido possam levar suas vidas adiante de forma digna, é incompatível com a ordem de valores consagrada pela Constituição de 1988 definir que cônjuges e companheiros podem receber maior ou menor proteção do Estado simplesmente porque adotaram um ou outro tipo familiar.” (grifei) De tais premissas pode-se concluir pela improcedência da presente dúvida. Em primeiro lugar, não houve declaração sobre a necessidade de garantia da legítima aos conviventes em união estável, na condição de herdeiros necessários. Em diversos precedentes, estabeleceu-se que este juízo administrativo não pode reconhecer inconstitucionalidade de lei (cf. AC0038442-73.2011, AC43.694-0/0e AC18.671-0/8). Pela mesma lógica, e até que se estabeleça uma jurisprudência mais firme acerca de tal tema, não se poderia aqui estender os termos do decidido pelo C. STF para além do que foi expressamente decidido ali. No silêncio, quanto o Art. 1.845 do Código Civil, este juízo administrativo não detém competência para reconhecer a inconstitucionalidade da não inclusão dos companheiros no rol de herdeiros necessários. Apenas saliente-se, quanto a este ponto, que a cautela do Oficial se mostrou em sintonia com a evolução jurisprudencial e com uma correta interpretação sistêmica do que foi julgado pelo Supremo. Exatamente por esta razão, o tema certamente voltará a ser rediscutido, não devendo a presente decisão ser interpretada como uma negativa da condição do companheiro como herdeiro necessário. Como dito acima, contudo, a questão ainda é recente, e necessita de uma maior uniformização doutrinária e jurisprudencial para que a leitura do Art. 1.845 do Código Civil possa ser feita de modo mais extensivo no âmbito dos registros públicos. Além disso, ainda que se afaste este último argumento, o presente caso possibilita o afastamento do óbice por outra razão. A tese estabelecida pelo C STF deve ser lida em conjunto com as razões da decisão, que como já exposto dizem respeito à garantia ao companheiro de que possa levar uma vida digna após a perda de um membro da sua família. Aqui, o companheiro já possui 50% de todos os bens partilhados, pois, ainda em vida, os conviventes planejaram seu patrimônio em consonância com o Código Civil vigente, adquirindo os bens em condomínio já sabendo que, na sucessão, o regime seria feito de forma diferenciada. Não por outra razão, a de cujus deixou testamento dispondo de todos os seus bens, garantindo ao seu companheiro apenas o direito de usufruto incidente sobre um dos imóveis, e tal testamento nunca foi contestado, sendo inclusive emitida ordem de cumprimento nos autos do Proc. nº 1048701-73.2017.8.26.0100, posterior a decisão do Supremo e transitada em julgado antes da lavratura da escritura. Ainda, o companheiro é um dos suscitados nesta ação de dúvida, concordando com o teor do testamento e requerendo o registro da partilha, não exigindo para si qualquer parte do monte partilhável. Neste sentido, seria contraditório exigir a retificação da escritura de inventário e partilha para que se garantisse a legítima do companheiro, sendo que este poderia renunciá-la, alcançando o mesmo resultado que teria o afastamento do óbice, com exceção do usufruto, que de qualquer modo poderia vir a ser garantido a ele pelos demais legatários. Finalmente, na modulação dos efeitos de sua decisão, o Supremo estabeleceu que “com a finalidade de preservar a segurança jurídica, o entendimento ora firmado é aplicável apenas aos inventários judiciais em que não tenha havido trânsito em julgado da sentença de partilha, e às partilhas extrajudiciais em que ainda não haja escritura pública. ”Não obstante, como bem exposto pelo D. Promotor: ”Seria possível, aliás, que a abertura do testamento e a lavratura da escritura de inventário tivessem ocorrido antes da publicação do citado acórdão, oportunidade em que não haveria qualquer óbice ao ingresso do título ao fólio real, vez que não atingido pela modulação de efeitos. Neste caso, vislumbra-se, pois, dois efeitos jurídicos distintos para a mesma situação, sendo que, apenas por uma questão de data da lavratura da citada escritura, passaria o companheiro a possuir mais direitos do que anteriormente.” Assim, pela própria segurança jurídica, que pretendeu o STF garantir com a modulação dos efeitos, a presente sucessão deve ser garantida na forma em que lavrada a escritura de inventário e partilha, garantindo-se ainda a preservação da vontade do testador, princípio interpretativo previsto no Art. 1.899 do Código Civil.
Do exposto, julgo improcedente dúvida suscitada pelo Oficial do xxº Registro de Imóveis da Capital, a requerimento de H. M. M. e outros, determinando o registro do título. Não há custas, despesas processuais nem honorários advocatícios decorrentes deste procedimento. Oportunamente, arquivem-se os autos.
P.R.I.C.
São Paulo, 20 de abril de 2018.
Tania Mara Ahualli, Juiz de Direito
(DJe de 25/04/2018 – SP)
Processo 1018190-58.2018.8.26.0100 –
Veja também: STF – Julgamento afasta diferença entre cônjuge e companheiro para fins sucessórios.