O Cartório Vampré, crônica na Revista Vejinha SP
5/jul/2013, por Matthew Shirts
“Existe cartório nos Estados Unidos?” Essa pergunta está entre as mais frequentes dos amigos paulistas ao longo dos meus 25 anos no Brasil. Eu nunca soube esclarecer a dúvida com autoridade. “Acho que não”, costumo dizer. A burocracia de lá me parece mais descentralizada. Mas ninguém se satisfaz com a explicação. Vejo de imediato a decepção na face dos meus interlocutores, como se estivessem pensando: que americano de meia-tigela. Eles esperam um sonoro “não” como resposta, desconfio.
Lembro-me disso enquanto aguardo o placar eletrônico convocar o portador da senha 445, no caso eu, através do seu barulhinho digital e da numeração vermelha, na sala de espera do 14º Tabelionato de Notas de São Paulo, o Vampré. Fica na Rua Antônio Bicudo, próximo à Rua dos Pinheiros, no bairro de mesmo nome. Sou cliente antigo.
Você pode me achar louco, não seria o primeiro, mas confesso sentir um pequeno prazer em frequentar esse local. Estão ali guardados alguns capítulos da minha vida, como o registro da antiga casa da Vila Madalena e o do nascimento dos meus três filhos. Gosto de ter uma desculpa para passar por lá logo cedo, a pé, a caminho do serviço. O público é dos bons para observar.
Encontra-se sentado, esperando a vez, assistindo à Ana Maria Braga e tomando seu café (ou chocolate quente) de cortesia em xícara reforçada de plástico, um grupo grande de motoboys. Parecem soldados em descanso entre batalhas, sobretudo quando chove. Desconfio que eles também gostem do Vampré. Diferentemente de mim, tendem a preferir o chocolate quente.
Vejo também senhores e senhoras distintos, que se arrumam, ainda nos dias de hoje, para ir ao cartório, e jovens com o rosto lindo das estagiárias. Há gente um pouco mais pobre, comprando um carro, e os que pertencem à velha classe média paulistana, vendendo o apartamento. Sou surpreendido por novas tendências, toda vez. Tingir o cabelo faz sucesso entre homens de meia-idade, por exemplo. Não sabia.
Nos meus primeiros anos na metrópole, enfrentei a burocracia em cartórios do centro da cidade. Não era tarefa para principiante. Como programa, ficava logo abaixo de injeção na testa. Havia fila para tudo: xerox, carimbo, pesquisa… Sem lugar para sentar, muito menos chocolatinho quente.
Essas lembranças todas são provocadas por um cartaz no pilar à frente da minha poltrona, na sala de espera do Vampré. O texto conclama: “Para garantir direitos e prevenir litígios futuros, faça a sua escritura de UNIÃO HOMOAFETIVA em cartório. Consulte um tabelião!”. É assinado pelo Colégio Notarial do Brasil, seção São Paulo.
Ao entender o seu significado, sou tomado por um sentimento bondoso. Confirma a sofisticação e a liberalidade que sempre atribuí à cultura brasileira em geral e à de São Paulo em particular. A maior parada LGBT do mundo não acontece aqui por acaso. A popularidade incendiária da luta contra a “cura gay” não é coincidência.
Como vimos nas manifestações recentes, a cultura nacional está antenada e aberta a transformações. Os costumes podem mudar. Mas a burocracia é para sempre.
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