Princípios da tipicidade e da taxatividade

Não é admitida a existência de outros direitos reais além dos estabelecidos na lei, motivo pelo qual não é possível às partes constituí-los mediante acordo, exceto em relação aqueles legalmente autorizados… O princípio consagrado é o da impossibilidade de existirem outros que não os estabelecidos na lei, em virtude do que às partes não é dado constituí-los mediante acordo, ‘ad nutum’, senão tão-só aqueles legalmente autorizados…

DIÁRIO OFICIAL – 20/4/2005 – QUARTA-FEIRA
– Parte II – JUDICIÁRIO
Caderno 1 – Parte 1

A C Ó R D Ã O
Vistos, relatados e discutidos estes autos de APELAÇÃO CÍVEL Nº 282-6/8, da Comarca da CAPITAL, em que é apelante o MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO e apelados AUGUSTO DULINSKI e SUA ESPOSA.

ACORDAM os Desembargadores do Conselho Superior da Magistratura, por votação unânime, em dar provimento ao recurso, de conformidade com o voto do relator que fica fazendo parte integrante do presente julgado.

Participaram do julgamento, com votos vencedores, os Desembargadores LUIZ TÂMBARA, Presidente do Tribunal de Justiça e MOHAMED AMARO, Vice-Presidente do Tribunal de Justiça.

São Paulo, 03 de março de 2005.
(a) JOSÉ MÁRIO ANTONIO CARDINALE, Corregedor Geral da Justiça e Relator

V O T O
Registro de imóveis – Dúvida – Contrato de compromisso de compra e venda da nua propriedade e de usufruto de imóvel – Inviabilidade do registro do contrato de compromisso de compra e venda do usufruto – Princípios da tipicidade e da taxatividade dos direitos reais – Impossibilidade, no presente caso, de ingresso do compromisso de compra e venda da nua propriedade sem o registro do usufruto correspondente – Recurso provido.

1. Trata-se de apelação interposta pelo Ministério Público do Estado de São Paulo contra r. sentença que julgou improcedente, em parte, a dúvida suscitada pelo 6º Oficial de Registros de Imóveis da Comarca de São Paulo e autorizou o registro de contrato de compromisso de compra e venda da nua propriedade do imóvel situado na Rua das Giestas, 446 e 450, objeto da transcrição 17.106 do 11º Registro de Imóveis da Comarca de São Paulo, mantendo, porém, a recusa do registro do contrato de compromisso de compra e venda de usufruto do mesmo imóvel.

Sustenta o apelante, em suma, que todas suas manifestações neste procedimento foram pela procedência da dúvida. Afirma que foi apresentado ao 6º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de São Paulo contrato de compromisso de compra e venda em que os apelados comprometeram vender o usufruto do imóvel para Irene Fernandes Matos e a nua propriedade para Eva Aparecida Matos Amaro e Elza Fernandes Matos, filhas de Irene. Aduz que o compromisso de compra e venda do usufruto não está previsto em lei como direito real, o que impede seu registro. Assevera que também não é possível o registro do contrato de compromisso de compra e venda como se fosse relativo à propriedade plena do imóvel, a ser adquirida em conjunto pelas pessoas nele indicadas como usufrutuária e adquirentes da nua propriedade, como aventado pelos apelados, porque este registro estaria em total desacordo com o título apresentado. Requer a reforma da r. decisão, com a procedência da dúvida.

Os apelados não apresentaram contra-razões ao recurso (fls. 55).

A douta Procuradoria Geral de Justiça, por sua vez, opina pelo provimento do recurso (fls. 64/67).

É o relatório.

2. Os apelados Augusto Dulinski e Angele Dulinski, por meio de escritura pública, comprometeram vender para Irene Fernandes Matos o usufruto do imóvel situado na Rua das Giestas, 446 e 450, objeto da transcrição 17.106 do 11º Registro de Imóveis da Comarca de São Paulo e comprometeram vender a nua propriedade do mesmo imóvel para Eva Aparecida Matos Amaro e Elza Fernandes Matos.

A fundamentação da r. decisão apelada é clara no sentido de que inviável o registro do compromisso de compra e venda do usufruto, do que decorreu a improcedência da dúvida apenas para que se promova o registro do compromisso de compra e venda da nua propriedade do imóvel (fls. 35/36).

A improcedência da dúvida, desta forma, foi parcial, admitindo o MM. Juiz Corregedor Permanente o registro tão somente de um dos negócios jurídicos celebrados por meio da mesma escritura pública, o que é plenamente possível mediante aplicação do princípio da cindibilidade do título.

A r. decisão prolatada pelo MM. Juiz Corregedor Permanente, nesta parte, não foi impugnada pelos apresentantes do título e, de qualquer forma, deve prevalecer porque não é possível o registro de compromisso de compra e venda de usufruto.

Miguel Maria de Serpa Lopes ensina que no direito brasileiro, assim como ocorre nos direitos suíço, austríaco, sueco, holandês, português e argentino, prepondera o sistema do antigo direito romano, também adotado pelo atual direito germânico, em que não é admitida a existência de outros direitos reais além dos estabelecidos na lei, motivo pelo qual não é possível às partes constituí-los mediante acordo, exceto em relação aqueles legalmente autorizados (Curso de Direito Civil, Vol. VI, Livraria Freitas Bastos S.A., 1960, págs. 31/32).

Esclarece esse autor que:

“O princípio consagrado é o da impossibilidade de existirem outros que não os estabelecidos na lei, em virtude do que às partes não é dado constituí-los mediante acordo, ‘ad nutum’, senão tão-só aqueles legalmente autorizados.

O conteúdo dos direitos reais não pode ser objeto de livre pactuação, e sim corresponder exatamente ao quadro traçado pela lei, em relação a cada um deles (45). Deste modo, a idéia do “numerus clausus” nos Direitos Reais representa mais um marco de separação entre os Direitos Reais e o das Obrigações, por isso que, enquanto os primeiros têm por pressuposto a especificidade, as segundas são, em geral, sensíveis à autonomia da vontade, permitindo uma criação permanente e incessante de novas figuras do contrato.” (Miguel Maria de Serpa Lopes, obra citada, págs. 32/33).

Orlando Gomes, sem discrepância, leciona que, entre outras características, se distinguem os direitos reais pela tipicidade (Direitos Reais, 10ª ed., 1988, Ed. Forense, pág. 7), e da mesma forma procede Arruda Alvim que, porém, distingue os princípios da tipicidade (legalidade) e da taxatividade (numerus clausus), o que faz esclarecendo que o primeiro “…significa que os direitos reais somente podem existir desde que a respectiva figura esteja prevista na lei e desde que o negócio ocorrido seja submetido ou subsumido ao tipo legal…” e o segundo “…significa que estes tipos são previstos pela lei de forma taxativa…” (Direito Privado, V. 1, Ed. RT, 2002, págs. 184/185).

O artigo 1.225, inciso VII, do Código Civil somente prevê como real o direito do promitente comprador do imóvel, e não é possível, em razão dos princípios da tipicidade e da taxatividade dos direitos reais, estender igual condição ao contrato de compromisso de compra e venda de usufruto que foi celebrado pelos apresentantes do título.

Esta conclusão não se altera pelo fato do usufruto também constituir direito real, pois aos particulares não é dado modificar e conjugar o conteúdo de dois direitos reais distintos, que são o compromisso de compra e venda de imóvel e o usufruto, para desta forma criar um direito real novo (compromisso de compra e venda de usufruto).

Assim ocorre, no presente caso, porque a conjugação dos elementos dos dois diferentes tipos de direitos reais fez surgir um novo tipo que, entretanto, não se reveste dos atributos daqueles de que se originou, por falta de previsão legal. Prevalece, neste ponto, a seguinte lição de Edmundo Gatti, que é inteiramente aplicável entre nós:

“En realidad, como la determinación legal de los derechos reales consiste ne fijar el contenido de cada uno de ellos, la modificación de ese contenido por los particulares, podría llegar a configurar la pretensión de constituir un nuevo derecho real, no admitido por la ley.

Cuando nos referimos a la ‘principalidad del orden público’ en el régimen de los derechos reales, dijimos que no todas las normas regulatorias eran inderogables y citamos una seria de ejemplos para demonstrar que la voluntad de los particulares tiene cierto margen; sin embargo, corresponde aclarar que esa voluntad no podría modificar nunca el contenido típico de los derechos reales.” (Teoria General de los Derechos Reales, Ed. Abeledo-Perrot, Buenos Aires, págs. 123/124).

Não se ignora, por sua vez, o estreito liame entre os princípios dos direitos reais e os do registro imobiliário em que também prevalece o princípio da taxatividade, agora significando, como esclarece Afrânio de Carvalho, que: “Os direitos registráveis são taxativamente fixados pela lei, constituem um ‘numerus clausus.'” (Registro de Imóveis, 4ª ed., 1998, Ed. Forense, pág. 84).

A ausência de previsão legal, portanto, impede o registro do contrato de compromisso de compra e venda de usufruto, como foi corretamente reconhecido na r. decisão apelada.

Não é demais, sobre a matéria aqui tratada, trazer à lume o v. acórdão prolatado por este E. Conselho Superior da Magistratura na Apelação Cível nº 40.017-0/0, da Comarca da Capital, relator o Desembargador Márcio Martins Bonilha, em que foi decidido:

“Não se deram conta, porém, que o mesmo princípio não vigora na seara dos direitos reais. O poder de soberania sobre a coisa e a sua eficácia “erga omnes” criam a chamada obrigação passiva universal (jura excludendi omnes allos), mas, em contrapartida, subordinam os direitos reais do princípio da tipicidade (numerus clausus). Não se justifica que se confiasse à iniciativa dos interessados a livre criação de instrumentos que podem causar séria perturbação no comércio jurídico e atingir terceiros que não se vincularam ao negócio (cf. João Matos de Antunes Varela, Das obrigações em geral, 8. ed., Coimbra : Almedina, 1994, Vol. I, p. 191 et seq.; Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das obrigações, 6. ed., Coimbra : Almedina, 1994, p. 103).

Não se nega nesta sede, assim, eficácia “inter-partes” à novação sob condição resolutiva potestativa que, em tese, está apta a produzir todos os efeitos entre os contratantes. O que se veda é que constitua o negócio (direito de crédito) título para a criação de direito real, por vulnerar o princípio da tipicidade, que tem sua face operacional disciplinada no art. 167 da Lei 6.015/73.

Irrelevante discutir, para efeito de qualificação do título no registro de imóveis, a validade do pacto de retrato em negócio distinto da venda e compra. Com ou sem o pacto, a novação, que gera direito exclusivo de crédito, não ingressa no assento imobiliário…” (Revista de Direito Imobiliário 44/158-159).

3. Embora por fundamento diverso, também não é possível o registro do compromisso de compra e venda da nua propriedade celebrado pelos apelados com Elza Fernandes Matos e Eva Aparecida Matos Amaro.

No contrato de que se pretende o registro as partes pactuaram o compromisso de compra e venda do usufruto do imóvel para Irene Fernandes Matos e o da nua propriedade para Irene Fernandes Matos e Eva Aparecida Matos Amaro.

Ocorre que o registro do compromisso de compra e venda apenas relativo à nua propriedade, como autorizado na r. decisão apelada, fará com que os promitentes vendedores Augusto e Angele Dulinski permaneçam com o usufruto do imóvel, ou ao menos com todos os direitos que decorrem do registro do usufruto, situação que não se coaduna com a vontade manifestada pelas partes no contrato que celebraram.

Tanto assim é que no contrato constou que a posse do imóvel foi transmitida a Irene Fernandes Matos, que dele já era detentora em razão de locação (fls. 11), e diante do negócio celebrado o exercício da posse, que é inerente ao usufruto (artigo 1.394 do Código Civil), não poderia mesmo permanecer com os promitentes vendedores.

Desta forma, admitir o registro somente do compromisso de compra e venda da nua propriedade terá como efeito o desvirtuamento da vontade manifestada pelas partes na celebração do negócio jurídico que entabularam, o que por si basta para a procedência da dúvida.

Existe, todavia, outro obstáculo que enseja igual solução para este procedimento.

É que Eva Aparecida Matos Amaro, compromissária compradora da metade da nua propriedade do imóvel, é casada com Antonio Amaro Sobrinho pelo regime da comunhão parcial de bens, mas apesar disso figurou no contrato como adquirente exclusiva desta metade dos direitos relativos ao compromisso celebrado, como se de bem reservado se tratasse (fls. 11).

O referido contrato nada contém que permita afastar o ingresso do bem no patrimônio comum de Eva e seu marido Antonio que, ademais, não interveio na celebração da escritura pública (fls. 12).

Nada impede, é certo, que Irene Fernandes Matos forneça numerário suficiente para a aquisição do imóvel, mas dele receba somente o usufruto, doando exclusivamente para suas filhas Eva e Elza a nua propriedade que, deste modo, não ingressará nos bens sujeitos à comunhão decorrente do regime de bens adotado no casamento da donatária Eva.(cf. Conselho Superior da Magistratura, Apelação Cível nº 78.532.0/3-00, da Comarca de São José do Rio Preto, relator o Desembargador Luís de Macedo).

A existência desta situação, contudo, não decorre do contrato celebrado, tanto em razão silêncio das partes como da previsão de solidariedade entre Irene e suas filhas na obrigação de pagar o preço pactuado para a compra e venda (fls. 11), o que torna impossível o registro pretendido.

4. Ante o exposto, dou provimento ao recurso e julgo a dúvida procedente.
(a) JOSÉ MÁRIO ANTONIO CARDINALE,
Corregedor Geral da Justiça e Relator.

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