Por mais respeito às instituições sérias
“Convivemos com claques lacradoras, verdadeiras patrulhas ideológicas, que não têm travas, mas se armam atrás das muradas dos veículos de comunicação. Esses ambientes não produzem mais do que bolhas cognitivas autorreferentes”.
Introdução
Este caso merece uma introdução. Ela será breve, pois o desenrolar do processo é bastante elucidativo.
Vivemos uma época de empobrecimento moral e cultural. Os meios de comunicação tradicionais estão perdendo paulatinamente todo o protagonismo que ostentavam no passado. Esvai-se toda a respeitabilidade de que se investiam jornalistas, colunistas, cronistas e tantos outros profissionais da pena que viviam nas redações e nos cafés da cidade. Vivemos um deserto de ideias, presos em simulacros, bolhas cognitivas que deformam a percepção.
Quando muito jovem, eu lia, com vivo interesse, o que nos tinham a dizer Millôr Fernandes, Ivan Lessa, Paulo Francis, Murilo Mendes, Rubem Braga, Nelson Rodrigues, Paulo Mendes de Campos… A lista é imensa e não vale a pena me demorar por aqui. Lia o Jornal da Tarde, com seu jornalismo plural, lia o Estadão todos os domingos e deleita-me com a vetustez de sua paginação e devorava os editoriais irretocáveis de Júlio de Mesquita Neto. Os jornais eram ambientes em que vicejava a crítica, a análise profunda, a crônica da vida.
O fato é que muitos de nós fomos perdendo o interesse que tínhamos na chamada grande imprensa. Já não me atrai, há tempos, o que veicula uma claque ruidosa e falsamente intelectualizada que se encastelou nas redações. Perdeu-se a graça, a flama literária que brotava daquelas páginas que tingiam as mãos e estimulavam o conhecimento e a inteligência. Aquilo tudo se diluiu na água chilra da intelectualidade brasileira.
O tempo passou na janela e alguns jornalistas não viram… Chega a ser digno de compaixão constatar o que foi feito do humor mordente de um Pasquim, das crônicas saborosas de um Fernando Sabino, de um Lourenço Diaféria, de uma Clarisse Lispector. Havia refinamento intelectual, finesse, elegância, arte. Agora temos tiradas “engraçadas” — como a série “fila da suruba”, de que falaremos logo abaixo.
Esse lixo que se produz não é exatamente um “texto popular, que faça rir e seja inteligente – ao mesmo tempo”, como diria a jornalista da qual falaremos logo abaixo. Tudo isso que se produz soa, ao menos para mim, simples mal gosto, expressão de uma certa decadência precoce.
Convivemos com claques lacradoras, verdadeiras patrulhas ideológicas, que não têm travas, mas se armam atrás das muradas dos veículos de comunicação. Esses ambientes não produzem mais do que bolhas cognitivas autorreferentes.
Ok, estes são tempos da pós-modernidade, já me conformei. Talvez eu seja um pouco parecido com o pai da jornalista (que não conheço e ainda assim respeito), embora, talvez diferentemente dele, não professe inclinações partidárias, nem defenda políticos de estimação de qualquer espectro político-ideológico ou quadrante do código penal.
Enfim, esses são os produtos que o mercado da cultura de massas hoje excreta pela porta dos fundos.
O episódio retratado abaixo colocou-nos em conexão. De um lado, uma famosa jornalista (segundo os critérios estéticos e morais dessa modernidade lacradora), de outro este escriba, igualmente um profissional da pena. Ela jornalista de um grande veículo de comunicação, eu um simples registrador. Ambos realizamos nosso mister com foros de profissionalidade. Entretanto, entre nós calha um profundo abismo. Nem falo dos recursos expressivos, nem dos dotes intelectuais da minha contraparte, pois que me recolho e limito às sandálias de um simples escriba; falo do que vejo, percebo e registro, com a maior fidedignidade possível, pois somos, como se sabe, profissionais da “fé pública”. Calhou de ser eu o registrador de seu título (imóvel), mesmo que ela não saiba desse fato nem compreenda absolutamente nada do que significa o mister registral para a sua própria segurança jurídica.
Lamentavelmente, minha parceira neste lance do destino produziu uma peça que me envergonha. Mais do que isso, produziu um diálogo, que logo cuidou de disponibilizar na internet, que nos dá bem a medida do que vemos pulular feito pulgas nos escaninhos da rede mundial.
O nome da personagem deste triste enlace prefiro não declinar. Não farei como ela a expor, de maneira tão pouco delicada e falaz, uma experiência que na verdade ela não vivenciou. Triste constatar que ela falou acerca do que não sabe, sequer presenciou ou mesmo experimentou. Típica flatulência intelectual. De dentro de sua bolha, produziu uma narrativa descolada dos fatos da realidade. O extrato de sua fala pode ser visto logo abaixo, na reprodução da ata notarial.
Instada a se pronunciar pela juíza corregedora permanente, a jornalista confessou, candidamente, “que não houve atraso provocado pelo 5º CRI no processamento da prenotação”. E seguiu sua palração anódina. Diz que…
… no decorrer do atendimento, foram trocados e-mails em tom amigável, respeitoso e com o propósito de cooperação. Afirmou, por fim, lamentar o desconforto causado aos funcionários da Serventia, contemporizando que apenas externou, em um ambiente de descontração e sem percepção técnica, a frustração sentida por incompreensão sobre o tempo de conclusão da compra de sua residência”.
Processo 1006633-69.2021.8.26.0100, sentença.
Ambiente de descontração? Sem percepção técnica? Que é isso cara-pálida? Sua ignorância olímpica a legitima a fazer troça do trabalho alheio?
Como jovens mimados, que não toleram qualquer contrariedade ou adversidade, a jornalista, já madura, demonstrou ignorância ativa e se pronunciou de modo muito indelicado e desrespeitoso.
Muitos se solidarizaram comigo e perquiriram: porque não aciona a jornalista? Porque não busca reparação de danos morais? Porque não usa a prova pré-constituída com a confissão, portada e abonada por sua advogada (aliás uma excelente profissional)?
Respondo-lhes: não vale a pena. Deixemo-la em paz com seus leitores. Asinus asinum fricat (*).
Fica aqui apenas um registro, entre tantos outros colacionados neste site. Sigo sendo o registrador da sua propriedade e ela pode ter a certeza absoluta de que poderá contar comigo para a segurança jurídica de seu patrimônio e para lhe dar todas as informações de que necessite, sempre, sem qualquer consideração extravagante acerca de suas opções políticas, sexuais, morais ou estéticas.
SJ
Meritíssima Juíza,
Os funcionários deste Quinto Registro de Imóveis reuniram-se com o Oficial para comunicar-lhe que a Serventia havia sido criticada publicamente em podcast da qual participou a interessada, Sra. TBTP.
As funcionárias, fãs da jornalista, sentiram-se indiretamente atingidas pela manifestação desairosa – já que se dedicaram a atender a advogada da jornalista com todo o respeito e boa vontade, como se verá. Deram-lhe informações precisas e objetivas, seja por escrito (devolutiva), seja por atendimento telefônico e por e-mail.
De fato, em tom de galhofa, a jornalista assim se manifestou sobre o trabalho do Quinto Registro de Imóveis de São Paulo:
“Vamos para o quem é você na fila da suruba? Na fila da suruba eu sou a pessoa ligando pro Quinto Cartório de Registro de Imóveis de São Paulo, perguntando o que que tá acontecendo que faz quarenta dias que eles não liberam os papéis pra eu poder mudar pra minha casa nova? A mulher já saiu do apartamento”; Voz 2: “O Codré tá nessa suruba com você falando a mesma coisa, porque ele também tá passando por isso, liga pra ele”; Voz 1: “Eu não sei o que acontece, quarenta dias, eles deram o prazo de… eles deram o prazo de quinze, quarenta dias que eles estão; Voz 2: “Tá tudo atrasado” (Ata notarial, anexa).
Não houve atraso. Tampouco, falta de informação. A difamação atinge não só este Cartório, mas alcança, igualmente, todas as funcionárias, por ironia apreciadoras do trabalho da escritora e jornalista. De modo reflexo, se pode dizer que o Poder Judiciário é igualmente alcançado, já que essa Egrégia Corregedoria exerce a fiscalização dos serviços em caráter permanente, 24x7x30.
Como se trata de uma notícia irradiada a partir de um plataforma de grande difusão, submeto a questão a Vossa Excelência para que aprecie e decida acerca da tramitação do título e os procedimentos do Cartório.
Tramitação do título
Esta Serventia recebeu no dia 16/11/2020 para exame, cálculo e registro o instrumento particular de compra e venda com alienação fiduciária firmado entre o agente do crédito imobiliário e TBTP, relativamente aos imóveis das Matrículas n. X, Y, Z.
No dia 16/11/2020 o título foi prenotado (protocolo – documento n. 1), fixado o prazo legal para finalização no dia 1/12. Porém, já no dia 30/11/2020, decorridos 11 dias úteis do ingresso, o título já se encontrava examinado, porém devolvido com exigências indicadas na nota devolutiva, ficando à disposição da interessada no balcão do Registro na data prevista legalmente (doc. 2).
As exigências eram corretas, foram devidamente fundamentadas, tanto assim que a parte interessada as acatou sem qualquer resistência e diligenciou o seu cumprimento.
A partir do dia 1/12/2020 o título estava disponível para retirada no cartório. Todavia, passariam ainda 15 dias até que a Dra. JVBP, advogada da interessada, entrasse em contato telefônico no dia 16/12/2020 para obter informações e dirimir algumas dúvidas, tendo sido atendida e orientada pela funcionária KCTS. Nesse mesmo dia, o título foi retirado, consoante comprovantes arquivados em Cartório (doc. 2, p. 2).
No mesmo dia (16/12) o título reingressaria no Cartório com atendimento parcial das exigências (doc. 3). O apresentante foi alertado do fato no próprio ato de reingresso, declarando-se ciente e firmando declaração no protocolo de reentrada e comprometendo-se a apresentar a escritura de união estável faltante no menor prazo.
No dia seguinte, 17/12, o título já havia sido reexaminado, motivando o envio de e-mail à Dra. J ressaltando, por escrito, a necessidade de apresentar a documentação faltante (doc. 4). A demora na entrega do título foi assim justificada pela Sra. Advogada:
Olá K, Boa tarde! Tudo bem?
Obrigado pelo e-mail. Como falamos ontem, a entrega dos documentos faltantes para cumprir de forma integral a exigência feita por vocês está dependendo de uma certidão que deve ser emitida pelo Cartório de Pessoas Naturais da Sé, certidão essa com data de entrega limite para o dia 22/12. Estamos fazendo o possível para agilizar no Cartório da Sé com o objetivo de entregar todo o necessário a vocês o quanto antes” (e-mail de 17/12/2020, 16:51, recebido de (omissis) (doc. 5).
No dia 18/12 este Cartório informaria à Sra. Advogada que a prenotação seria extinta no dia 21/12, e-mail que foi reiterado no dia 22/12, ambos respondidos no mesmo dia no seguinte teor: “Sim, ainda hoje vamos fazer o protocolo da documentação faltante! Fico à disposição caso precisem de qualquer outra info. Muito obrigada! JVBP” (Doc. 6)
No dia 22/12 foi remetido novo e-mail para a Sra. Advogada reiterando a necessidade de apresentação dos documentos faltantes, bem como solicitando o complemento de valor de depósito prévio (Doc. 7). No mesmo dia, os documentos faltantes foram finalmente apresentados e o registro pôde ser consumado no dia seguinte (23/12), ficando à disposição da interessada que o retirou às 15h do mesmo dia 23 de dezembro de 2020 (Doc. 8).
Como se vê, não houve retardamento injustificado do registro do título. Malgrado o fato da pandemia do COVID-19, que obrigou o Cartório a adotar um regime extraordinário de atendimento, com funcionários afastados por suspeita ou mesmo com o contágio pelo vírus confirmado, ainda assim, por dedicação e esforço da equipe, não foram alterados os prazos de entrega dos títulos, embora pudéssemos fazê-lo justificadamente.
Seguem os documentos comprobatórios de tudo quanto informado acima.
Apresento a Vossa Excelência os nossos respeitosos cumprimentos.
São Paulo, 19 de janeiro de 2021.
SÉRGIO JACOMINO, Oficial do Registro
Doutor em Direito Civil pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, UNESP (2005) e especialista em Direito Registral Imobiliário pela Universidade de Córdoba, Espanha. Atualmente é o Quinto Oficial de Registro de Imóveis da cidade de São Paulo. Membro honorário do CeNoR – Centro de Estudos Notariais e Registais da Universidade de Coimbra, Presidente da Academia Brasileira de Direito Registral Imobiliário – ABDRI e Presidente do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil – IRIB.
Processo 1006633-69.2021.8.26.0100, j. 09/04/2021, DJe 13/04/2021, Drª Vivian Labruna Catapani. Acesso à íntegra do processo.
Nota do editor: (*) Asinus asinum fricat: Um burro coça outro burro. Diz-se de pessoas sem merecimento que se elogiam mutuamente e com exagero.