Datas e Personagens da História
por Carlos Luiz Poisl
“Ao contrário, os tabeliães, de modo geral, se têm mostrado com capacitação técnica bastante, e superado, diligentemente, as dificuldades com que se deparam no deslinde de inventários, divórcios e partilhas, mesmo quando as situações fogem do enquadramento padrão”.
A memória humana, além de falha, é curta. Daí a importância de registrar por escrito, para preservação histórica e conhecimento da posteridade, os fatos mais significativos que exercem influência no comportamento e no desenvolvimento do homem. Não menos importante é registrar quais as personagens principais que contribuem para a ocorrência desses fatos. Nunca será possível relacionar todas as pessoas, digamos, históricas. Não só por serem muitas, mas também porque há aquelas que não aparecem. Estas agem nos bastidores, anonimamente, sem que seus nomes fiquem em evidência, mas nem por isso são menos importantes.
No respeitante à história recente do notariado brasileiro, é de assinalar três acontecimentos.
Depois da maior de todas as guerras, a Segunda Guerra Mundial, 1939/1945, propagou-se o ideário socialista e, como conseqüência, a intervenção do Estado em muitos setores da atividade. O notariado nacional sofreu essa influência. Sendo considerado dependência da Justiça dos Estados, surgiram nestes tentativas de estatiza-lo, uma vez que a Justiça é estatal. O serviço notarial, ao par do judicial, seria executado por funcionários públicos no sentido restrito. Por outro lado, sob o ilusório pretexto de agilizar e baratear a solução do grave problema nacional da falta de moradias, foi dispensada a intervenção notarial na negociação imobiliária financiada dentro do plano estatal,
Em certo momento ocorreu a estatização dos serviços tanto judiciais como extrajudiciais, por emenda constitucional imposta pelo governo militar. Havia sido enviado um projeto de reforma do Judiciário ao Congresso, que, porém, não o aprovou. Então o Presidente Ernesto Geisel fechou o Congresso e incluiu a pretendida reforma estatizante na constituição. Entretanto, no tocante aos serviços, ela não chegou a ser posta em prática por diversas razões. Como já expus em outro artigo, ela depois foi parcialmente revogada, excluindo os extrajudiciais da estatização. Voltarei a este assunto mais adiante, quando abordar o papel desempenhado pelo tabelião Tullio Formícola num dos fatos históricos expostos.
Apenas no Estado da Bahia a estatização ocorreu de fato, persistindo até hoje, em afronta à Constituição.
Estas são ocorrências negativas muito importantes, mas a sua análise foge do objetivo deste artigo. Quer-se assinalar, ao contrário, os fatos de maior influência positiva no desenvolvimento, e não no atraso, do moderno notariado brasileiro.
1º – 5 de outubro de 1988
A primeira data histórica, nesse sentido, é 5 de outubro de 1988, em que foi promulgada a Constituição vigente. O seu artigo 236 é importante por estabelecer de modo definitivo – tanto quanto pode ser definitiva uma disposição constitucional no Brasil – que a atividade notarial seja exercida em caráter privado e não por funcionários remunerados pelo Estado. Fica preservado, por isso, o notariado brasileiro dentro dos de tipo latino, com as funções amplas do aconselhamento às partes e formalização, autenticação e conservação de suas manifestações de vontade, e não só a de autenticação., como passam a ser os do tipo administrativo. Aquele, o latino, a toda a evidência, é o que melhor atende ao interesse público, sendo, por isso, o mais adotado em todo o mundo.
Ao tempo em que livrava o notariado e os registros da estatização, a nova constituição a impôs aos serviços auxiliares da Justiça. Importou isto na separação, também definitiva, dessas duas categorias de funcionários, os auxiliares do Juízo e os demais, notários e registradores, cujas atividades nada têm de judiciais. Corrigiu-se assim um erro que vinha de longa data, livrando os chamados extrajudiciais das normas de organização judiciária dos Estados. Muitas delas não se coadunam com os serviços de notários e registradores, realizados fora dos recintos forenses, longe dos olhos dos magistrados. Exigem estes serviços conhecimentos especiais de Direito Substantivo, não encontráveis no Direito Processual ou Adjetivo, campo de trabalho dos auxiliares diretos dos juizes.
A Constituição, em resumo, franqueou o caminho para a busca do enquadramento do notariado nas características do tipo latino que ainda lhe faltavam: uma lei reguladora da atividade, a exigência de conhecimentos jurídicos especiais para quem exerce a função notarial, e a autonomia institucional. Esse desejado aprimoramento do notariado brasileiro, que lhe propiciará prestar melhores serviços à coletividade, provavelmente não lhe seria possível alcançar, se tivesse sido estatizado. Por isso fica incluído o dia da promulgação da Constituição no rol das datas mais significativas do notariado brasileiro.
Para os fins históricos desejados, resta nomear as pessoas a quem se deve a inserção na Constituição da República da importante disposição referida. É impossível uma enumeração exaustiva. Contando com a compreensão dos leitores, permito-me declinar apenas um nome, como símbolo do trabalho de todos os mais. Foi quem chefiou o escritório que, por inspiração dele, um grupo de notários e registradores estabeleceu em Brasília, para acompanhar os trabalhos dos constituintes e neles influir. Foi uma tarefa delicada, desempenhada com total proficiência pelo então distribuidor de protestos da cidade do Rio de Janeiro, Antonio Carlos.Leite Penteado. Os notários contraíram com ele uma dívida impagável.
Fica aqui o convite para as pessoas que acompanharam de perto esse trabalho complementarem a indicação ora feita, relacionando quem mais deva ser considerado o co-realizador do feito, para fins do registro histórico.
2º – 18 de novembro de 1994
Pela tranqüilidade que transmitiu o sepultamento dos movimentos estatizantes, foi possível às lideranças da classe continuarem seu empenho em aperfeiçoar o notariado brasileiro. Serviram-se, para tanto, do próprio dispositivo constitucional já invocado, que acenava para uma lei especial reguladora das atividades registrais e notariais. Para seu total enquadramento em todos os caracteres do notariado de tipo latino, faltava, como já dito, suprir a falta de uma lei notarial no país, além da necessidade de formação jurídica para o acesso à função, e a independência, tanto individual do notário como a da instituição notarial.
A lei, para uniformizar a prestação dos serviços e regular a organização notarial. O título universitário, para o capacitação intelectual de quem exerce atividade técnica de nível superior, universitário. A independência, como corolário do regime privatista.
Considerando o notariado brasileiro como um todo, pode-se dizer que o marco inicial de sua modernização é o advento da Lei Notarial e Registral, nº 8.935, de 18 de novembro de 1994. Antes dela houve ações isoladas em alguns Estados, nesse sentido. Paulatinamente os grossos livros encadernados, manuscritos, foram dando lugar às folhas datilografadas. As máquinas copiadoras foram substituindo a cara fotografia de documentos e as trabalhosas públicas-formas. Em raros serviços de protestos e registros entrou o computador e a microfilmagem. Porém essas inovações, sob pressão dos avanços tecnológicos, eram localizadas, dependentes de demoradas tramitações de pedidos de autorização às conservadoras e lentas autoridades da Magistratura. Não há dúvida que, por acelerar a modernização, a data da promulgação da
Lei Notarial e Registral, 18 de novembro de 1994, é a mais importante na história do moderno notariado brasileiro, e como tal deve ser cultuada.
Lastima-se, contudo, que a lei inovadora tenha ficado incompleta. A pretendida autonomia institucional do notariado, incluída no projeto da lei, encontrou forte e invencível resistência de influentes setores da Magistratura, e foi dela excluída
Mas a independência individual e a maior qualificação intelectual em razão da necessidade da formação jurídica para o exercício da atividade, começam a produzir seus salutares efeitos. São degraus importantíssimos para o acesso à autonomia institucional, a qual, mais cedo ou mais tarde, haverá de acontecer, fatalmente. Vai depender muito do interesse e do empenho.dos próprios notários.
Embora então já retirado da atividade, acompanhei com muito interesse a luta para a obtenção da lei histórica. No período anterior à Constituição, desde 1970, eu havia colaborado diretamente na elaboração de três dos quatro anteprojetos de leis notariais, que resultaram em tentativas frustradas, o que reavivava o meu interesse em ver afinal um sonho tornar-se realidade. Em razão desse acompanhamento, embora à distância, sinto-me em condições para declinar o nome considerado como o principal, no meu modo de entender, dentre os componentes do grupo empenhado na luta. Acho que não erro, dizendo que se trata do tabelião José Flavio Bueno Fischer. Fui testemunha de sua dedicação. Pode-se dizer que ele, na ocasião, mudou-se para Brasília, gastando muito de seu tempo e de seu dinheiro, na obstinada busca da aprovação da lei
Outros notários e registradores estiveram juntos com ele. Com temor de incidir em graves omissões, não os relaciono. Alguém mais capaz deverá completar o registro.
Por falar na atuação do tabelião Fischer, não posso deixar de mencionar que ele constitui talvez a minha maior contribuição para o notariado brasileiro. Fui o responsável pelo ingresso dele na atividade. Nos idos da década de 1970, embora muito moço, ele já era advogado bem sucedido. Foi quando “comprei o seu passe” – que não foi barato – e o contratei para ser o meu substituto no 1º Tabelionato de Novo Hamburgo. Hoje, tendo-o como titular, é esse tabelionato referência não só nacional, mas também internacional, por suas instalações com tecnologia de última geração. E ele, Flávio, além de presidir a associação nacional de tabeliães mais de uma vez, exerce proeminente cargo na prestigiosa União Internacional do Notariado Latino.
3º – 4 de janeiro de 2007
4 de janeiro de 2007 é uma data significativa para o notariado brasileiro. Depois de décadas de sofridas frustrações decorrentes da subtração de atribuições da atividade notarial, bem como da minimização da importância da mesma atividade, é a mencionada data, provavelmente, um marco da reversão dessa capitis diminutio na história do tabelionato nacional. Nesse dia foi promulgada a lei que faculta o emprego da escritura notarial, sem intervenção judicial, para a feitura de inventários causa mortis e de divórcios, com as respectivas partilhas de bens.
A significação não reside precisamente no aumento do volume de trabalho que ela ocasionou para os tabelionatos. Esse aumento, consideradas apenas as escrituras, excetuadas procurações e autenticações diversas, não chega a 5%, segundo rápida pesquisa a que procedi. Mas o significado decorre, principalmente, da surpreendente divulgação que o fato obteve na mídia. Em consequência, causou uma melhora na imagem do tabelião que, espera-se, não se limite aos meios de divulgação, e se estenda também ao meio político. Aos poucos deverá sobreelevar-se, positivamente, a qualificação técnica aos apodos negativos que circulam na mídia, até pejorativos às vezes, de não passar
o tabelião de um burocrata emperrador da negociação privada. Vão-se desvanecendo os restritos temores iniciais de possíveis falhas na execução da nova tarefa. Não se tem conhecimento de que, neste primeiro ano, hajam elas ocorrido. Ao contrário, os tabeliães, de modo geral, se têm mostrado com capacitação técnica bastante, e superado, diligentemente, as dificuldades com que se deparam no deslinde de inventários, divórcios e partilhas, mesmo quando as situações fogem do enquadramento padrão. Essa eficiência há de refletir-se não só na opinião pública, mas também nos meios judiciais e políticos, e bem que poderia ser aproveitada para amenizar a desinformação quanto a importância da atividade notarial na proteção aos direitos dos cidadãos em sua negociação privada.
Mas a memória humana é fraca. Dentro de pouco tempo talvez já ninguém vá atribuir qualquer importância a esse marco. Entrará no esquecimento, de modo inexorável. Ninguém se lembrará de que resultou de uma longa batalha nos bastidores. Ninguém valorizará o trabalho, a tenacidade, o empenho, a habilidade política, a que se votaram, desinteressadamente, com sacrifícios pessoais, os componentes de um pequeníssimo grupo de tabeliães, até a obtenção do objetivo. Esse trabalho, realizado sem alardes, teve o seu início com o tabelião paulista, ex-presidente do Colégio Notarial do Brasil, Tullio Formícola, que nele persistiu durante anos, com interregnos, ditados pelas mutações dos ventos políticos, até vê-lo transformado em lei.
Embora seja impossível, tal qual nos casos históricos anteriores, listar todos os batalhadores, diz Tullio ser imprescindível citar ao menos Sérgio Busso e Rosalino Sobrano, que o acompanharam na iniciativa. Fica a porta aberta para que sejam lembrados mais nomes, por quem esteve envolvido na campanha.
Na exposição introdutória deste artigo, mencionei ter ocorrido a estatização do notariado, juntamente com os demais serviços judiciais e extrajudiciais, durante os governos militares. Por volta de 1980, Tullio, então substituto em pleno exercício do tabelionato do qual é agora titular, liderou um grupo de outros substitutos nas mesmas condições, e esse grupo conseguiu, a muito custo e na surdina, incluir em outra emenda constitucional uma disposição que excluiu os extrajudiciais da estatização. Ficou assim marcada a presença histórica de Tullio Formícola em dois fatos dos mais significativos para o moderno notariado brasileiro.
Paralelamente aos projetos de lei encaminhados por Tullio e que resultaram na Lei nº 11.441, também o tabelião Paulo Roberto Geyger Ferreira, gaúcho que adotou a cidadania paulistana, mantinha contatos com advogados paulistas no mesmo sentido. Cheguei eu próprio, por solicitação dele, a colaborar na redação de um esboço de projeto de lei, o que, porém, perdeu importância depois da promulgação da lei, cujo primeiro aniversário está prestes a ocorrer.
É uma data a ser lembrada e festejada.
Novo Hamburgo, 20 de dezembro de 2007.