Testamento válido / inventário extrajudicial: IMPOSSIBILIDADE
NOTARIUM SCRIBERE VOLUNTAS VIVENTIUM,
DEFUNCTI VOLUNTATEM IUDEX
Parecer 221/2014-E
Tabelião de Notas – Consulta perante o Juízo Corregedor Permanente acerca da possibilidade de lavrar escritura pública de inventário na hipótese de existir testamento, desde que os herdeiros sejam capazes, estejam de acordo com a partilha e não haja fundação – Decisão do Juízo Corregedor Permanente que autoriza a prática do ato, mediante prévia análise do Juízo responsável pela abertura e registro do testamento a respeito da inexistência de qualquer circunstância que torne imprescindível a ação de inventário e expressamente autorize o inventário extrajudicial – Inviabilidade –
O exame realizado pelo Juízo que determina a abertura, registro e cumprimento do testamento, nos termos do artigo 1.125 e seguintes do Código de Processo Civil, é superficial, referente aos aspectos formais e extrínsecos – O exame do conteúdo do testamento, em observância às disposições contidas no artigo 1.899 e seguintes do Código Civil, ocorre na fase do inventário judicial, daí a razão de o legislador vedar o inventário extrajudicial em qualquer hipótese de existência de testamento, nos termos do artigo 982 do Código de Processo Civil.
Excelentíssimo Senhor Corregedor Geral da Justiça:
Trata-se de expediente iniciado em razão da consulta formulada pelo 10º Tabelião de Notas da Comarca da Capital ao Juízo Corregedor Permanente, acerca da possibilidade de lavrar escritura pública de inventário de bens deixados por pessoa que ditou testamento público perante o mesmo Tabelião, conforme solicitado por usuário do serviço, fundado na deliberação do Juízo da 7ª Vara da Família e das Sucessões da Comarca da Capital, pela qual foi determinado o registro e cumprimento do testamento público e possibilitada a lavratura por escritura pública de inventário extrajudicial, desde que todos os herdeiros sejam maiores e capazes, não haja fundações entre os herdeiros testamentários e estejam todos de acordo com a partilha.
O Colégio Notarial do Brasil, Seção São Paulo, manifestou-se favoravelmente, baseado no parecer do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).
O Ministério Público manifestou-se favoravelmente, com a ressalva de que deverá ser constatada a inexistência de causa para abertura de inventário judicial em procedimento judicial de abertura de testamento, do qual decorra sentença neste sentido, e de que a decisão judicial deverá constar da escritura do inventário extrajudicial.
A MMª. Juíza Corregedora Permanente decidiu que nas hipóteses de testamento aberto e registrado pelo Juízo da Família e das Sucessões, sem que haja interesse de incapazes e fundações e dissenso entre os herdeiros e legatários, e desde que não identificada pelo Juízo qualquer circunstância que torne imprescindível a ação de inventário, o qual deverá expressamente autorizar que este se faça por escritura pública, não haverá óbice ao inventário extrajudicial.
É o breve relatório.
Opino.
Os fundamentos expostos na r. decisão da MMª. Juíza Corregedora Permanente são os seguintes: O intuito do legislador ao obstar a lavratura de escritura de inventário extrajudicial nas hipóteses do artigo 982 do Código de Processo Civil foi a de salvaguardar o interesse público e de incapazes, sem prejuízo de assegurar o exato cumprimento da vontade do testador, observados os limites legais, e, diante desse quadro, afigura-se razoável a interpretação dada pelo MMº Juiz da 7ª Vara da Família e das Sucessões da Capital, ao dispensar o inventário judicial após regular abertura e registro de testamento, ausente interesse de incapazes ou de fundações e dissenso entre herdeiros e legatários; A capacidade técnica dos notários para lavratura de testamentos públicos e cerrados viabiliza compreensão das disposições testamentárias e seu fiel cumprimento, dentro dos parâmetros legais; É imprescindível o procedimento judicial de abertura e registro de testamento, a fim de viabilizar identificação de hipóteses em que as disposições testamentárias permitiriam interpretações distintas (art. 1899, CC), disposições nulas (art. 1900, CC), ou que demandassem aplicação do disposto nos artigos. 1901 a 1911, do Código Civil.
Não obstante o cuidado e preocupação ressalvados na r. decisão, a fim de possibilitar o inventário por meio de escritura pública mesmo na hipótese de existência de testamento, a análise que se faz na fase do procedimento da apresentação do testamento em juízo, nos termos do artigo 1.125 e seguintes do Código de Processo Civil, é superficial, restrita aos aspectos formais e extrínsecos.
Humberto Theodoro Júnior, na obra “Curso de Direito Processual Civil”, Procedimentos Especiais, Volume III, Editora Forense, 2007, 38ª edição, página 405 e seguintes, ao tratar da matéria, assim dispõe:
“O procedimento de jurisdição voluntária a respeito da matéria é muito singelo e destina-se a conhecer a declaração de última vontade do morto, verificar a regularidade formal do testamento e ordenar seu cumprimento.
Não entra o juiz em questões de alta indagação, que poderão ser discutidas pelas vias ordinárias. Nem mesmo as interpretações das cláusulas testamentárias são feitas nesse procedimento gracioso. Só deve o juiz negar o “cumprase” quando seja visível a falta de requisito essencial, como inobservância do número de testemunhas ou violação do invólucro do testamento cerrado.
(…)
Como decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo, com apoio em Pontes Miranda, o ‘cumpra-se’ que o juiz profere no procedimento de abertura do testamento é fruto de ‘cognição superficial’ e, assim, por exemplo, ‘na fase de abertura, registro e cumprimento do testamento não se pode debater comoriência ou ruptura’.
O ‘cumpra-se’, portanto, não importa declaração definitiva de regularidade ou perfeição do testamento, mas apenas a autorização estatal para que se inicie a execução da vontade do testador.
‘O procedimento de abertura do testamento’ – no dizer de José Olympio de Castro Filho – ‘nada mais é, e somente é, que um procedimento para autenticação do estado em que o documento foi apresentado em juízo’.”.
Com efeito, a legislação vigente não prevê que no procedimento judicial de abertura e registro de testamento, o juiz identifique se as cláusulas testamentárias permitem interpretações distintas (art. 1899, CC), disposições nulas (art. 1900, CC), ou que demandem aplicação do disposto nos artigos 1901 a 1911, do Código Civil, como disciplinado na r. decisão do Juízo Corregedor Permanente, o que se dá apenas na fase de cumprimento (execução) do testamento, ou seja, no inventário.
Transcrevo os ensinamentos de Silvio De Salvo Venosa, na obra “Direito Civil”, Oitava Edição, Direito das Sucessões, Editora Atlas, 2008, página 235 e seguintes, ao tratar do conteúdo, interpretação e análise das disposições testamentárias, na parte de interesse:
“Importa agora examinar o conteúdo interno do testamento. O que pode a vontade testamentária expressar; como pode dispor; para quem; até que limite; qual a redação das cláusulas e seu sentido, todas essas são questões que interessam ao testamento do ponto de vista intrínseco.
Como facilmente percebemos, o testamento é negócio jurídico altamente complexo para o exame do jurista, uma vez que cada plano de existência, validade e eficácia dependem de inúmeras regras. Normalmente, quando nos lembramos da noção de testamento, vem-nos à mente o veículo para disposição de patrimônio após a morte, ou seja, a cédula testamentária.”
“Ao tratar das disposições testamentárias em geral e dos legados e seu pagamento, o Código faz ressaltar nítidas regras interpretativas, disposições que não faz nos outros compartimentos.
A preocupação do Código em descer a minúcias talvez se justifique pelo caráter pessoal e causa mortisdo documento, mas há, sem dúvida, regras plenamente dispensáveis para interpretar a vontade do testador. Compartilhamos, sem dúvida, da opinião de Sílvio Rodrigues (1978, v. 7:130): o testador deve ser suficientemente claro. Se uma disposição sua não puder ser cumprida por ininteligível ou obscura, o exame depende do caso concreto. Nula a disposição, a ordem de vocação legítima suprirá a vontade testamentária.
A interpretação de um testamento faz-se sob os mesmos princípios de qualquer ato ou negócio jurídico. O intérprete deve procurar a real intenção do testador. Os métodos são de interpretação em geral: estuda-se a redação; a concatenação lógica; as diversas cláusulas em conjunto; o momento em que foi elaborado o testamento; o local; a época da vida do testador e seu estado de saúde; as pessoas que o cercavam e com ele conviviam na época; seus amigos e inimigos; seus gostos e desgostos; amores e desamores; tudo enfim que sirva para ilustrar o intérprete, o julgador, em última análise, do real sentido de sua vontade. Nisso está o conjunto interpretatório testamentário, que não foge às regras gerais de interpretação. Está presente a conjugação dos métodos gramatical, lógico, sistemático e histórico. É válido tudo o que dissemos a respeito da interpretação dos negócios jurídicos em Direito civil: parte geral, Capítulo 21. Interpretar o negócio jurídico é determinar o sentido que ele há de ter; é determinar o conteúdo voluntário do negócio.
O intérprete posiciona-se, à primeira vista, entre dois extremos: o que o testador disse e o que realmente quis dizer. O juiz não pode descuidar-se do valor da palavra, da declaração expressa no testamento. A palavra exarada é a garantia dos interessados. Não pode voar por meras suposições, fora do contexto testamentário. A possibilidade do art. 1.903, que diz respeito à possibilidade de identificação do herdeiro, por outros documentos, refere-se tão-só a um adminículo na interpretação.
Muito árdua aqui a posição do julgador. Nem sempre as palavras são suficientes para demonstrar o alcance que a vontade desejou. Pode o testador ter dito mais, ou ter dito menos do que as frias palavras analisadas demonstram. Por outro lado, os interesses e as emoções envolvidos pelos interessados em processos desse jaez procuram levar a interpretação a verdadeiras elucubrações para fazer valer seu interesse, nem sempre dos mais louváveis. Em cada passo do processo interpretativo, nunca se pode fugir do bom-senso.”
E, mais adiante, ao falar do artigo 1.899 do Código Civil, diz que:
“Qualquer que seja a conclusão do intérprete, porém, não deve fugir do texto e do contexto do testamento. Nesse sentido deve ser compreendida a dicção do art. 1.899.
A propósito, a opinião de Zeno Veloso (2003:210):
‘Sob pretexto de apurar qual é essa intenção, não tem direito o intérprete de criar, inventar, estabelecer o que ele acha coerente, racionável e justo, impondo, afinal, a sua vontade, substituindo-a pela do defunto, traindo a memória do de cujus e o que este deixou perenizado no seu testamento. Enfim, não pode o intérprete, interpretando, travestir-se de testador do testamento alheio.’
Nosso ordenamento editou apenas a regra geral do art. 1.899 sobre interpretação dos testamentos, no que andou bem, pois não há que se outorgar balizamentos excessivos ao intérprete nesse campo, cuja doutrina já solidificou regras. Ocorre, contudo, como veremos, que o Código trouxe outras regras que, de certa forma, minudenciam a vontade do testador, conforme, aliás, já afirmamos.”
Em suma, a legislação vigente determina, no momento de abertura, registro e cumprimento, o exame superficial, formal, referente aos aspectos extrínsecos do testamento, e relega à fase do inventário a análise profunda do conteúdo das cláusulas testamentárias, a fim de verificar eventual nulidade e outros aspectos previstos no Código Civil, e assegurar que seja respeitada a vontade do testador.
Esta é a razão de a lei não permitir em hipótese alguma o inventário extrajudicial caso exista testamento, porque o exame do seu conteúdo com a finalidade de dizer o direito é atribuição exclusiva do juiz, por ser inerente à sua função, porém, do juiz do inventário, o qual, mesmo na hipótese de consenso entre os herdeiros capazes, deve verificar se a partilha elaborada está em conformidade com as disposições testamentárias e a real vontade do testador.
À vista do exposto, o parecer que respeitosamente submeto ao elevado exame de Vossa Excelência é de que seja mantida a vedação legal de lavratura de escritura pública de inventário na hipótese de existência de testamento, ainda que todos os herdeiros sejam capazes e estejam de acordo com a partilha, e não haja fundação.
Caso este parecer seja aprovado e devido à relevância da matéria, sugiro a publicação na íntegra no Diário da Justiça Eletrônico, durante três dias alternados.
Sub Censura.
São Paulo, 26 de maio de 2014.
(a) ANA LUIZA VILLA NOVA
Juíza Assessora da Corregedoria
DECISÃO: Vistos.
Iniciado o presente procedimento por consulta do 10º Tabelião de Notas da Capital, discute-se, nestes autos, a possibilidade de inventário e partilha extrajudicial em sucessão testamentária.
Respondendo consulta do 10º Tabelião de Notas da Capital, e depois de colher as manifestações do Colégio Notarial do Brasil, do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família (em nota técnica) e da douta Procuradoria Geral da Justiça, todas no sentido afirmativo, a Dra. Tatiana Magosso, MM. Juíza de Direito da 2ª Vara de Registros Públicos, proferiu a decisão de fls. 35/39, no sentido de que “tratando-se de testamento já aberto e registrado, sem interesse de menores e fundações ou dissenso entre os herdeiros e legatários, e não tendo sido identificada pelo Juízo que cuidou da abertura e registro do testamento qualquer circunstância que tornasse imprescindível a ação de inventário” (in verbis), não haveria óbice à lavratura de inventário extrajudicial.
Ao que consta do ofício que fl. 2, tal sentença transitou em julgado, sendo certo, contudo, que a magistrada sentenciante, considerando a relevância da matéria e a necessidade de diretriz uniforme, a qual não fique circunscrita à Comarca da Capital, submeteu a questão ao exame desta Corregedoria Geral da Justiça.
A Dra. Ana Luiza Villa Nova, culta e dedicada Juíza Assessora desta Corregedoria (equipe do extrajudicial) ofertou o parecer de fls. 45/53, no sentido de que “seja mantida a vedação legal de lavratura de escritura pública de inventário na hipótese de existência de testamento, ainda que todos os herdeiros sejam capazes e estejam de acordo sobre a partilha, e não haja fundação”.
Tomando conhecimento de que questão semelhante recebeu decisão oposta, proferida pelo Dr. Marcelo Benacchio, MM. Juiz de Direito da mesma 2ª Vara de Registros Públicos da Capital, determinei que de tal sentença se extraísse cópia, juntandose- a a estes autos. Há informação no sentido de que contra essa decisão igualmente não foi interposto recurso.
Preservado o entendimento da digna prolatora da decisão aqui analisada, e em que pese o extremado respeito devido às instituições que se manifestaram nos autos (CNB, IBDFAM e MP), tenho para mim que a posição que melhor se adequa aos princípios e normas que regem a matéria, ao menos em minha perspectiva, é aquele exposto no parecer da MMª Juíza Assessora da Corregedoria.
Lembro aqui que, como tive ocasião de escrever há bastante tempo, em modestíssima obra, a decisão judicial não é a conclusão necessária de um silogismo, mas sempre uma “decisão” que, como tal, pressupõe a possibilidade de optar por outra ou outras soluções. O processo judicial é o reino do discutível, do dual, do duelo dialético que abre caminho para uma escolha entre as várias soluções possíveis (cf. Akel, Hamilton Elliot, O Poder Judicial e a Criação da Norma Individual, Saraiva, 1995, p. 131).
Bem por isso, o juiz, ao decidir, mesmo em matéria de cunho administrativo, escolhe uma dentre várias possibilidades de aplicação do direito, e faz isso baseado em juízos de valor. Há sempre uma ideologia da política jurisdicional, na medida em que a aplicação do direito é operação lógico-valorativa.
Como lembrou Dra. Ana Luiza Villa Nova em seu parecer, a análise que o Juiz faz, quando da apresentação do testamento, nos termos dos artigos 1.125 e seguintes do Código de Processo Civil, é superficial, restringindo-se aos aspectos formais e extrínsecos. A propósito, elucidativo o ensinamento de Humberto Theodoro Junior, na obra citada no parecer, no sentido de que esse procedimento de jurisdição voluntária é bastante singelo, destinando-se a verificar a regularidade formal do testamento e ordenar seu cumprimento, não importando declaração definitiva da perfeição do testamento, mas apenas a autorização estatal para que se inicie a execução da vontade do testador.
Além dos fundamentos deduzidos no bem lançado parecer da MMª Juíza Assessora, impressionaram sobremaneira aqueles lançados na sentença proferida pelo Dr. Marcelo Benacchio, cuja cópia foi juntada, por determinação minha, a fls. 55/61, em especial os seguintes:
(a) sucessão legítima e testamentária revelam diversidade estrutural e funcional, na medida em que apenas na segunda existe negócio jurídico de eficácia diferida;
(b) na sucessão testamentária, é essencial que se assegure o cumprimento da vontade do testador e a proteção de interesses de familiares próximos, daí a necessidade de seu processamento sob a presidência de Juiz de Direito, sem possibilidade normativa de processamento em atividade extrajudicial delegada;
(c) inadequada se revela a atividade extrajudicial delegada para apreciar questões de conteúdo não patrimonial, para dar efetividade à vontade do testador e para a aplicação de institutos como a redução das disposições testamentárias e a deserdação e
(d) as disposições testamentárias, que constituem normas, conquanto individuais, demandam interpretação, como de resto todas as normas (lembrando-se, nesse ponto, quão enganosa é a máxima in claris cessat interpretativo), sendo certo que essa busca de revelação da vontade do testador não ocorre no procedimento de apresentação ou abertura do testamento, constituindo tarefa própria do juiz.
Não é ocioso lembrar, ainda, que a vedação contida na parte inicial do artigo 982 do Código de Processo Civil vigente (“Havendo testamento… proceder-se-á ao inventário judicial”) não sofreu qualquer alteração no projeto do novo Código de Processo Civil, ora em fase final de tramitação.
Em suma, acolhendo o parecer de fls. 45/53, a decisão desta Corregedoria Geral da Justiça é no sentido da impossibilidade, por expressa vedação legal, de realização de inventário extrajudicial em existindo testamento válido, ainda que todos os sucessores sejam capazes e manifestem sua concordância.
Publique-se a íntegra desta decisão e do parecer no Diário Oficial da Justiça, durante três dias alternados.
Intimem-se.
São Paulo, 18 de julho de 2014.
(a) HAMILTON ELLIOT AKEL
Corregedor Geral da Justiça.
Processo nº 2014/62010 – Capital – 10º Tabelionato de Notas de São Paulo.
(D.J.E. de 23/07/2014 – SP)