ACÓRDÃO.
Vistos, relatados e discutidos estes autos de APELAÇÃO CÍVEL Nº 480-6/1, da
Comarca de SOROCABA, em que é apelante OLINDA DA SILVA e apelado o 1º OFICIAL
DE REGISTRO DE IMÓVEIS, TÍTULOS E DOCUMENTOS E CIVIL DE PESSOA JURÍDICA da
mesma Comarca.
ACORDAM os Desembargadores do Conselho Superior da Magistratura, por votação
unânime, em negar provimento ao recurso, de conformidade com o voto do
relator que fica fazendo parte integrante do presente julgado.
Participaram do julgamento, com votos vencedores, os Desembargadores CELSO
LUIZ LIMONGI, Presidente do Tribunal de Justiça e CAIO EDUARDO CANGUÇU DE
ALMEIDA, Vice-Presidente do Tribunal de Justiça.
São Paulo, 23 de março de 2006.
(a) GILBERTO PASSOS DE FREITAS,
Corregedor Geral da Justiça e Relator.
VOTO
Registro de Imóveis - Dúvida julgada procedente - Negativa de acesso ao
registro de instrumento particular de compromisso de venda e compra - Negócio
jurídico documentado no título que evidencia verdadeira promessa de permuta -
Inviável o registro à luz do disposto no art. 167, I, da Lei nº 6.015/1973 - Exame de qualificação do
título que abrange análise da natureza do negócio jurídico celebrado -
Recurso não provido.
1. Cuidam os autos de dúvida de registro de imóveis suscitada pelo Primeiro
Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoa
Jurídica de Sorocaba, a requerimento de Olinda da Silva, referente ao
ingresso no registro de “Instrumento Particular de Compromisso de Venda e
Compra Quitado”. Após o regular processamento, com impugnação por parte da
interessada e manifestação do representante do Ministério Público, a dúvida
foi julgada procedente para o fim de manter a recusa do Oficial em registrar
o título, por se tratar, em verdade, de compromisso de permuta de imóveis,
não incluído entre as hipóteses de registro previstas no art. 167, I, da Lei
nº 6.015/1973.
Inconformada com a respeitável decisão, interpôs a interessada Olinda da
Silva, tempestivamente, o presente recurso. Em preliminar, argúi a apelante a
nulidade da sentença proferida, por não ter apreciado questão levantada
quanto ao cerceamento do direito de ação decorrente da recusa do Oficial de
proceder ao registro do título, já que, sem o ato de registro, ficará obstada
a possibilidade de propositura de ação de adjudicação compulsória em face dos
compromitentes vendedores do imóvel objeto do contrato discutido. No mérito,
sustenta que a conduta do Oficial, ratificada pela sentença recorrida,
implica a imposição de celebração de negócio jurídico diverso do firmado, com
extrapolação do exame admissível na fase de qualificação do título. Por outro
lado, argumenta que o contrato foi celebrado com observância das normas do Código Civil, tendo havido
entrega de outro imóvel em pagamento do preço ajustado, aplicando-se à dação
em pagamento as normas da compra e venda. Finalmente, aduz que, a se
considerar o ajuste como permuta, também a ele se aplicam as regras
referentes à compra e venda, a tornar possível o registro do título.
Houve pronunciamento do Ministério Público em ambas as instâncias, sempre no
sentido de ser negado provimento ao recurso.
É o relatório.
2. A preliminar de nulidade da sentença proferida não merece acolhida.
Com efeito, a decisão da Meritíssima Juíza Corregedora Permanente da
Serventia examinou, de maneira adequada, o ponto controvertido concernente à
dúvida suscitada, observados os limites próprios do processo administrativo
instaurado.
A propósito, cumpre ressaltar que a questão posta em discussão diz respeito à
possibilidade de registro do título apresentado pela apelante, à luz das
normas registrais. Questões outras, relacionadas às providências
jurisdicionais de que terá de se valer a recorrente, para obter o reconhecimento
e a efetivação do seu alegado direito ao cumprimento do ajustado no
“Instrumento Particular de Compromisso de Venda e Compra Quitado”, não têm
relevância, no caso, já que, por si sós, não são suficientes a tornar
registrável título que, pela lei, não o seja.
Daí por que não se exigia, na espécie, expresso pronunciamento da Meritíssima
Juíza Corregedora Permanente a respeito.
De todo modo, nunca é demais lembrar que, nos termos do art. 5º, XXXV, da Constituição Federal,
nenhuma lesão ou ameaça de lesão a direito fica subtraída da apreciação pelo
Poder Judiciário, de sorte que restará sempre aberto à apelante o exercício
do direito de ação, para obtenção de tutela jurisdicional apta à persecução
da satisfação de seus interesses, ainda que, eventualmente, por meio de
instrumento processual diverso do da ação de adjudicação compulsória por ela
invocada.
Quanto ao mérito, o recurso não comporta provimento.
A apelante apresentou a registro título rotulado como “Instrumento Particular
de Compromisso de Venda e Compra Quitado”, por intermédio do qual José Carlos
Thome e Valquiria Fernandes Pedroso Thome lhe prometeram “vender” o lote de
terreno de nº 80 da quadra “B” do loteamento denominado “Conjunto
Habitacional Jardim Serrano”, situado na cidade de Votorantim, Comarca de
Sorocaba, pelo preço de R$ 29.000,00, representado por um terreno consistente
na área “A” do desmembramento efetuado no lote nº 20 da quadra “C” do
loteamento denominado “Parque Jataí”, situado igualmente na cidade de
Votorantim, Comarca de Sorocaba (fls. 07 a 09).
Embora o instrumento contratual tenha sido denominado pelas partes como
compromisso de venda e compra de imóvel, na realidade, como bem observado
pelo Oficial registrador, pelo Ministério Público em ambas as instâncias e
pela Meritíssima Juíza Corregedora Permanente, o negócio jurídico em tela não
corresponde, efetivamente, a tal modalidade contratual.
Isso porque, nos termos do art. 481 do Código Civil, “Pelo contrato de compra
e venda, um dos contratantes se obriga a transferir o domínio de certa coisa,
e o outro, a pagar-lhe certo preço em dinheiro”.
No caso, como se verifica, a contraprestação estipulada, a cargo da apelante,
não foi o pagamento do preço em dinheiro, mas a entrega de outro imóvel. Tal
circunstância afasta a caracterização da promessa de venda e compra,
evidenciando que o que as partes firmaram foi verdadeiro compromisso de
permuta de imóveis.
Conforme ensina Orlando Gomes:
“O preço [no contrato de compra e venda] é a 'quantia’
que o comprador se obriga a pagar ao vendedor. Elemento natural do
contrato, 'sine pretio nulla venditio’, dizia Ulpiano.
Deve consistir
em ´dinheiro’.
Se é outra coisa, o contrato define-se como ´permuta’ ou ´troca’. Não
se exige, contudo, que seja exclusivamente dinheiro, bastando que constitua a
parcela principal. Para se saber se é 'venda’ ou 'troca’,
aplica-se o princípio ´MAJOR PARS AD SE MINOREM TRAHIT’; venda, se
a parte em dinheiro é superior; troca, se é o valor do imóvel.” (Contratos. 12ª ed. Rio de
Janeiro: Forense, 1990, p. 245 e ss.).
Registre-se que, na hipótese em tela, o preço ajustado corresponde,
integralmente, ao valor do imóvel cuja transferência foi prometida pela
apelante, de sorte que configurado, mesmo, o compromisso de permuta.
Não se diga, como o faz a recorrente, que a promessa de transferência do
imóvel se deu a título de dação em pagamento, pois esta, como sabido,
pressupõe obrigação preexistente cujo cumprimento se dá por meio de prestação
diversa da devida (art. 356 do Código Civil), situação distinta da presente,
em que a prestação devida desde o início sempre foi a entrega do imóvel.
Cabe anotar, ainda, que a análise do negócio jurídico documentado no título
apresentado a registro está entre aquelas que se exigem do Oficial
registrador, para fins de qualificação, sob a ótica do princípio da
legalidade registral.
Como esclarece Narciso Orlandi Neto, com apoio nas doutrinas, entre outros,
de Afrânio de Carvalho e Ricardo Dip:
“A validade da inscrição depende da
validade do negócio jurídico que lhe dá origem e da faculdade de disposição
do alienante’ (Afrânio de Carvalho, ob. cit., p. 249).
Assim é o registro de imóveis no Brasil. Ele não tem eficácia convalidante do
título.
(...)
Se o registro de imóveis fosse meramente copiativo dos documentos
apresentados, isto é, se os negócios instrumentalizados entrassem para o
registro automaticamente, nenhuma seria sua segurança (...).
Estabelece a lei, pois, um filtro de legalidade para os títulos,
sujeitando-os, antes do registro, à qualificação.
De acordo com Ricardo Dip, a qualificação registrária expressa o princípio da
legalidade (Sobre a Qualificação no Registro de Imóveis, cit., p. 19). Se ela
não existisse, o registro só serviria para enganar o público, favorecer o
tráfico ilícito e provocar novos litígios (cf. Lacruz Berdejo e Sancho
Rebullida, ob. cit., p. 58).
O Código Civil fala do controle da legalidade quando cuida da inscrição da
hipoteca, no art. 834: 'Quando o oficial tiver dúvida sobre a legalidade da
inscrição requerida, declará-la-á por escrito ao requerente...’
A regra vale, todavia, para todos os registros. A Lei n. 6.015/73, depois de
fixar o prazo para a efetivação dos registros (art. 188), relaciona algumas
cautelas que o registrador deve tomar, relativas: ao direito real - disputa
de grau entre hipotecas (art. 189) e de direitos contraditórios (art. 190);
ao instrumento e sua forma (arts. 193 e 194); a requisitos do registro -
princípio da continuidade (art. 195) e da especialidade (art. 196).
Apenas por estes dispositivos é possível vislumbrar o alcance da
qualificação. De acordo com Ricardo Dip, ela envolve o título levado a
registro, o registro existente e persistente e a relação entre o título
exibido e o registro existente (Sobre a Qualificação, cit., p. 38). De fato,
esparsas na Lei n. 6.015/73, há inúmeras exigências que se referem ora ao
próprio título, ora ao registro e ora à adequação de um ao outro.”
(Retificação do Registro de Imóveis. São Paulo: Oliveira Mendes, 1997, p.
73-74).
Assim, adequado o exame realizado pelo Primeiro Oficial de Registro de
Imóveis de Sorocaba, ao analisar o conteúdo do título levado a registro, para
dele extrair sua verdadeira natureza de compromisso de permuta.
E correta, ainda, a recusa do ingresso do título no registro, já que o
compromisso de permuta não está discriminado no rol de títulos registráveis
do art. 167, I, da Lei nº 6.015/1973.
Como ensina Afrânio de Carvalho:
“O registro não é o desaguadouro comum de todos e quaisquer títulos, senão
apenas daqueles que confiram uma posição jurídico-real e sejam previstos em
lei como registráveis.
A enumeração dos direitos registráveis da nova Lei do Registro é taxativa, e
não exemplificativa (art. 167).
Dessa maneira, não são recebíveis os títulos que se achem fora dessa
enumeração, porquanto o registro nada lhes acrescenta de útil. Nesse
particular, a regra dominante é a de que não é inscritível nenhum direito que
mediante a inscrição não se torne mais eficaz do que sem ela.
(...)
(...) as numerosas promessas contratuais que visam a obter, em seu
seguimento, a aquisição de um direito real, ficam fora do registro, pela
simples razão de que este nada acrescenta à sua eficácia. Se o descumprimento
delas enseja a cobrança de perdas e danos, não ensejará senão isso, se forem
registradas.
(...)
Por conseguinte, as promessas de compra e venda (retratável), de hipoteca, de
permuta, de doação, de dação em pagamento, de baixa de hipoteca, ou de parte
de hipoteca (liberação parcial do imóvel), devem ficar estranhas ao registro,
de vez que nenhum efeito produz o seu ingresso, tantas vezes obtido sob o
pretexto de se tratar de direitos imobiliários. Não basta que sejam direitos
imobiliários, importando que sejam também reais, para constituírem matéria de
registro, ponto esquecido por decisões judiciais que dão beneplácito à
prática contrária aos princípios.” (Registro de Imóveis. 2ª ed. Rio de
Janeiro: Forense, 1977, p. 263-265). Nesse sentido, inclusive, já decidiu
este Colendo Conselho Superior da Magistratura, em acórdão relatado pelo
eminente Desembargador Luiz Elias Tâmbara, então Corregedor Geral da Justiça,
em hipótese análoga, concernente a promessa de dação em pagamento:
“EMENTA: Dúvida procedente - Princípio da Legalidade - Inteligência do art.
167, I, da Lei de Registros Públicos - Rol taxativo - Inadmissível acesso de
Promessa de Dação em Pagamento - direito pessoal e não real. Pedido de
averbação - Via inadequada para apreciação - Apelação não provida.” (Ap. Cív.
nº 000.084.6/4-00 - j. 23.10.2003).
Portanto, não há como admitir o registro do título em questão, tal como
pretendido pela apelante. Nesses termos, pelo meu voto, à vista do exposto,
nego provimento ao recurso.
(a) GILBERTO PASSOS DE FREITAS, Corregedor Geral da Justiça e Relator.
(D.O.E. de 20.06.2006).
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